Sobre Tulipas e Manipulação

Explica Bitcoin
11 min readMay 17, 2021

--

A Bolha das Tulipas, uma fakenews de quase 400 anos

Você já deve ter escutado anedotas sobre a Bolha das Tulipas, que teria ocorrido na Holanda na década de 1630s.

Reza a lenda que, conforme a Holanda se tornou uma potência mercantil, o mercado de tulipas cresceu. Com isso, a especulação explodiu e traders ofereciam preços exorbitantes por bulbos de tulipas que ainda nem haviam florescido. E então, como em qualquer bolha econômica, o mercado de tulipas de Amsterdã implodiu, deixando diversos participantes em ruínas financeiras. Fortunas teriam sido construídas e perdidas, famílias teriam tido seu patrimônio destruído e, até mesmo a economia da Holanda como um todo, teria sentido o peso deste colapso, impedindo a Holanda de se consolidar como uma potência ultramarina.

Imagem satírica de um mercador de tulipas e um comprador (retratado quase como um bobo de corte, mas não achei

Por mais de um século os economistas contam essa história. Ela é tão difundida que tem aparição até em hollywood, quando o famoso personagem Gordon Gekko mostra o quadro com a evolução do preço das tulipas e diz “Nos anos 1600s os holandeses pegaram a febre da especulação — até um ponto onde você poderia comprar uma bela casa em um dos principais canais de Amsterdam pelo preço de um único bulbo. Eles chamaram de febre das tulipas”

Só achei essa cena em francês para colocar ela como referência. Ela pode ser vista aqui

Só existe um pequeno problema… nada disso aconteceu de verdade.

O que realmente aconteceu?

Resumidamente, a Holanda passou por uma grande mudança demográfica durante a guerra de independência contra a Espanha, que se estendeu de 1560s até meados de 1600s. Durante este período as cidades de Amsterdam, Haarlem e Delft se tornaram importantes entrepostos comerciais. É neste contexto, por exemplo, que a Holanda invade o Brasil e estabelece a ocupação de Pernambuco, entre os anos 1630–1654. Esta expansão comercial trouxe enormes riquezas para a Holanda, que era comandada principalmente por uma oligarquia urbana com laços com os comerciantes navais. Estes comerciantes navais trouxeram novas ideias e grande quantidade de dinheiro, ajudando a revolucionar a economia holandesa a partir do final do século 16.

Conforme as interações econômicas foram se modificando, as interações socias e os valores culturais também foram sendo alterados. O contato com mundos distantes gerou um aumento de interesse no estudo da história natural e um fascínio pelo exótico na classe comercial. Uma das consequências deste processo, entre diversas outras coisas, era que bens vindos do Império Otomano e extremo oriente eram escassos e se tornaram objetos de desejo e ostentação. Com isso, estes bens exóticos atingiam altos valores comerciais.

Originalmente, as tulipas são encontradas na natureza nos vales das montanhas de Tien Shan, na região montanhosa em que as fronteiras de China, Tibete, Afeganistão e Rússia se encontram. Desde o século 11 as tulipas são cultivadas pelo Império Otomano, onde elas eram consideradas uma das flores mais refinadas e desejadas, se tornando um símbolo dos otomanos.

Imagem que ilustra bem a importancia dada as tulipas no Império Otomano

Os holandeses aprenderam que as tulipas podem nascer de duas formas distintas: a partir de sementes, ou dos bulbos que crescem a partir do bulbo principal. Um bulbo que cresce a partir da semente leva algo entre 7 e 12 anos para florescer, enquanto que o bulbo proveniente de outro já floresce no ano seguinte.

Como acontece com álbuns de figurinha, selos, camisas de futebol e qualquer outro objeto de desejo de colecionadores, algumas tulipas são mais raras que outras e se tornaram mais valorizadas pelos holandeses. Mas os produtores ainda não compreendiam o que causava determinado padrão de coloração na tulipa (seja variabilidade genética, seja um vírus que deixa as tulipas doentes e modifica a sua coloração).

Algumas das variações fenotípicas (de aparência) das tulipas

O que significa dizer que existiam padrões de coloração que eram mais valorizados, mas que os produtores não sabiam como gerar esses padrões.

Qual a saída? Produção em larga escala para, ao acaso, ter mais tulipas com os padrões de coloração mais desejados e exóticos. Quando alguém se refere ao preço absurdo que as tulipas atingiram nesta época, na realidade a pessoa está se referindo particularmente ao preço absurdo destas tulipas “especiais”, de acordo com o economista Peter Garber.

Todo o processo produtivo e dinheiro gasto nas produção de mais tulipas não muda o fato que elas só florescem por uma semana. E que elas também requerem expertise para o seu cultivo, uma apreciação pela beleza e pelo exótico e, é claro, dinheiro em abundância para que um luxo desses pudesse ocorrer como fenômeno social. Basicamente, é como diversos outros luxos que a elite usa como forma de distinção social.

Até aqui a realidade e o mito andaram lado a lado, mas aqui eles se separam.

O mito diz que a febre das tulipas tomou conta de todos os estratos da sociedade holandesa por volta da década de 1630s. De acordo com essa narrativa, desde os ricos mercadores até os mais pobres campesinos entraram em uma espécie de “febre do ouro” com as tulipas, comprando as tulipas a preços elevados somente para revendê-las na sequência. Esta febre teria chegado ao auge no final do ano 1636 e atingido seu fundo em fevereiro de 1637, quando mais e mais pessoas deixaram de cumprir seus contratos de compra de tulipas nos preços prometidos, causando o colapso desse mercado.

Gráfico da variação do preço das tulipas entre os anos de 1634 e 1637

Na realidade não haviam tantas pessoas envolvidas neste evento e a repercussão econômica na sociedade foi pequena, afirma Anne Goldgar, professora de história moderna na King’s College de Londres e autora do livro “Tulipmania: Money, Honor, and Knowledge in the Dutch Golden Age. “Eu não consegui encontrar ninguém que faliu nos registros históricos. Se realmente tivesse ocorrido a destruição de parte da economia, como o mito sugere, existiram muito mais registros históricos.”

Isto não significa que nunca existiu uma “exuberância irracional” no preço das tulipas. De fato, os comerciantes participaram de um frenético comércio de tulipas e pagaram preços elevados por determinadas variações de tulipa. E quando diversos compradores anunciaram que não conseguiriam pagar os preços previamente combinados, o mercado das tulipas de fato colapsou, gerando uma crise de pequenas proporções. Mas este colapso não afetou todos os níveis da sociedade e muito menos causou o colapso industrial de Amsterdã ou de outra localidade. As tulipas eram negociadas enquanto os bulbos ainda estavam plantados na terra e não havia a troca por dinheiro até o momento de liquidação da operação, meses mais adiante. Então a maioria dos comerciantes não perdeu dinheiro no ato, e apenas foram informados que não receberiam pagamentos futuros. Qualquer pessoa que comprou e vendeu tulipas no papel no verão de 1636 não teve ganho ou perda real. Apenas os produtores aguardando pelo pagamento pelas tulipas encomendadas tiveram problemas, mas estes eram comerciantes abastados capazes de absorver a perda.

Mas se a tal “Bolha das Tulipas” nunca aconteceu como o mito nos conta, como surgiu este mito? De acordo com um artigo da Smithsonian Magazine, na realidade os responsáveis por difundir esta versão da história seriam moralistas cristãos. Assim como os Amish de hoje em dia, que preferem viver num passado idílico e utópico a se adaptar a sociedade moderna e os cristãos holandeses de 1630s também teriam se sentido incomodados com os avanços do “mundo moderno”. Todas as histórias exageradas da época, como comerciantes desesperados e falidos se atirando nos canais e pessoas perdendo suas casas, poderiam ser atribuídas aos calvinistas holandeses. Religiosos em geral são conservadores e preferem a manutenção do status quo, e os calvinistas holandeses estariam preocupados que o boom de consumismo impulsionado pelo mercado das tulipas acarretaria em um decaimento da ordem social.

Outras referências citam também um costume holandês de cantigas de sátira que teria ajudado a popularizar a história ao tirar sarro dos traders de tulipa. Estas cantigas de sátira foram passadas adiante, até que Charles Mackay escreveu o popular livro “Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crowds” em 1841, onde ele teria interpretado de maneira literal diversas destas canções de sátira e/ou dourado a pílula e adicionado elementos sensacionalistas para melhorar a história.

Mas se a Bolha das Tulipas nunca existiu, por que ela é tão famosa?

Aqui nós entramos no terreno da especulação e não mais nas nuances do registro histórico. Ou seja, aqui é só a opinião do autor mesmo.

FUD e a manipulação das emoções como mecanismo de controle

Você sabe o que é FUD? Se você investe, ou pelo menos já se interessou minimamente pelo mundo do Bitcoin, você já foi exposto a diversas FUDs e talvez não saiba.

O que é o FUD então? Uma explicação completa pode ser lida aqui, mas basicamente FUD é a sigla para “Fear, Uncertainty and Doubt” (medo, incerteza e dúvida), uma técnica de marketing que é constantemente aplicada no noticiário financeiro, em especial no mundo do Bitcoin. Mais do que uma sigla, o FUD é uma estratégia coordenada que consiste em disseminar boatos e notícias falsas com o intuito de criar medo, insegurança e dúvida nas pessoas.

Cuidado! Perigo! Atenção! Estão tentando te manipular!

A intenção de quem espalha o FUD é modificar algum padrão de comportamento através da manipulação das emoções.

“Ah, mas isso não funciona comigo”, você pode estar pensando. Bom, o Zuck discorda e já vem utilizando e aprimorando estas técnicas desde, pelo menos, 2014.

Sabe aquelas notícias de que o consumo energético da rede do Bitcoin vai utilizar toda a energia do mundo? Um exemplo claro de FUD. Qualquer pessoa que já estudou um pouco o tema sabe os erros básicos que este raciocínio implica. Caso não seja o seu caso, leia estes dois textos (1 e 2).

A principal função do FUD é influenciar a percepção das pessoas por meio de informações duvidosas, fazendo com que elas tomem decisões diferentes do que planejavam.

No mundo do marketing digital, mais especificamente do copywriting, os escritores são incentivados a utilizar gatilhos mentais para captar a atenção das pessoas. As principais emoções que um copywriter quer incutir no leitor quando ele está escrevendo um texto são “medo” ou “ganância”, que são as duas reações emocionais mais básicas. Os FUDs são informações miram na emoção “medo” para gerar uma reação específica desejada.

E existem medos que são compartilhados pela maioria das pessoas do mundo, como por exemplo questões relacionadas à saúde e ao dinheiro. É justamente no medo em relação ao dinheiro que os FUDs envolvendo o Bitcoin miram.

Sobre Charlie Munger e veneno de ratos

Você provavelmente já escutou falar do Charlie Munger, um dos maiores investidores de todos os tempos e sócio do Warren Buffet na Berkshire Hathaway. Ele sempre é citado como fonte de sabedorias e conselhos para investidores. Uma das suas principais frases é “Mostre-me os incentivos e eu mostrarei o resultado”.

No mundo do Bitcoin esta questão dos incentivos se torna especialmente importante. Qualquer bitcoinheiro com mais de 100 horas de estudo (acredite, 100h ainda é pouco para começar a compreender realmente as diversas partes do ecossistema do Bitcoin, sua filosofia, história e suas implicações econômicas, políticas e sociais) sabe que o Bitcoin existe para disruptar todo o sistema bancário mundial e separar o dinheiro do estado. Será que os incentivos de pessoas e entidades que se beneficiam do atual sistema bancário mundial são as fontes de informação mais honestas?

Então quando a Bloomberg e o Bank of America comparam o Bitcoin com uma bolha, como na imagem abaixo, é interessante nós nos perguntarmos “quais são os incentivos destes players?”.

Imagem extraído dos relatórios da Bloomberg e Bank Of America, ilustrando como o Bitcoin se comportaria como qualquer uma das outras bolhas históricas
O Explica Bitcoin (com habilidades de um boomer) corrigiu o gráfico colocando a evolução do preço desde 2017 até hoje.

Você imaginaria que a Blockbuster falando bem da Netflix? Ou a Kodak falando bem das primeiras câmeras digitais da Sony? Será que os condutores de carruagens falavam bem dos primeiros carros no início do século passado?

Será que a opinião do Charlie Munger tem alguma validade? Sem levar em conta o fato dele ter 97 anos e provavelmente nunca ter ligado um computador. Acho que é o caso de usar a máxima “não aceito conselhos sobre tecnologia de alguém que não sabe converter um pdf”. Mas, mesmo excluindo todos estes fatores ad hominem, será que faz sentido escutar a opinião de alguém que (como ilustram as imagens abaixo) sempre teve empresas do setor bancário americano, como American Express, Wells Fargo, Bank of America, Moody’s e US Bancorp no portfólio? E que, mesmo hoje em dia, tem ~25% do seu portfólio em empresas que estão sendo ou serão disruptadas pelo Bitcoin? De novo, você acha que a Blockbuster falaria bem da Netflix?

Exemplo do portfólio da Bershire Hathaway no início de 2019
Portfólio da Berkshire Hathaway no final de 2020

Curva de adoção e gráficos de tulipa

Vou sintetizar aqui algo que será muito bem trabalhado em um próximo texto. Você já viu o modelo que representa as curvas de adoção de novas tecnologias? Basicamente, são várias curvas em S, com maior ou menor velocidade de adoção de acordo com a relevância da tecnologia. O Fundo Verde, do famoso gestor Luiz Stuhlberger tem um bom artigo explicando em detalhes (clique aqui).

A adoção das novas tecnologias ocorre de maneira exponencial, o que significa que qualquer gráfico que você encontrar, para qualquer uma destas tecnologias, enquanto elas estiverem em processo de adoção, será um gráfico com aparência de gráfico de “bolha das tulipas” em desenvolvimento. Enquanto o Bitcoin estiver em processo de adoção e crescimento exponencial da sua base de usuários, o gráfico do preço sempre parecerá uma bolha em pleno desenvolvimento ou em processo de correção/”estourou a bolha” e, se analisado sem uma compreensão do comportamento da curva de adoção de novas tecnologias, pode ser interpretado como tal. Mas isto é um erro conceitual básico de não entender a diferença entre uma tecnologia com efeitos de rede e em processo de adoção e um bem de consumo facilmente replicável (sem as barreiras de entrada, que os value investors como Charlie Munger e Warren Buffett tanto gostam). Um bem de consumo facilmente replicável nunca sustentará um crescimento parabólico desses, pois a oferta por ele é elástica. Ou seja, é possível aumentar a produção deste bem de consumo, o que rebalancea o equilíbrio entre oferta e demanda. Já no caso do Bitcoin a oferta é inelástica, o que significa que não importa o tamanho da demanda, nunca será possível aumentar o ritmo da “produção” do Bitcoin e não ultrapassar o seu teto de 21 milhões.

E qual é a moral da história?

As pessoas sempre vão seguir seus próprios interesses e sempre terão pessoas tentando nos manipular através de FUDs diversos. Cabe a nós estudarmos e sabermos reconhecer o quão sem fundamento são estes FUDs.

Como todo bom bitconheiro sabe “don’t trust, verify”.

Referências:

https://www.smithsonianmag.com/history/there-never-was-real-tulip-fever-180964915/

https://ms.mcmaster.ca/~grasselli/Garber89.pdf

https://press.uchicago.edu/ucp/books/book/chicago/T/bo5414939.html

https://mundoeducacao.uol.com.br/historiadobrasil/invasoes-holandesas.htm

https://theconversation.com/tulip-mania-the-classic-story-of-a-dutch-financial-bubble-is-mostly-wrong-91413

https://www.bbc.com/news/business-44067178

https://www.barrons.com/articles/the-real-story-of-the-dutch-tulip-bubble-is-even-more-fascinating-than-the-myth-youve-heard-51557666037

--

--

Explica Bitcoin

Alguém cansado de ler tanta bobagem a respeito de um tema importante. Este espaço será utilizado para traduções e para textos autorais