Baterias e Mundo o Moderno — 2a seção “A Bateria Bitcoin”

Explica Bitcoin
58 min readSep 3, 2021

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Esta é a 2a parte do texto “A Bateria Bitcoin”. A primeira parte pode ser encontrada aqui.

“Garanto que Steve Jobs está hoje falando a Deus o que fazer, está criando um novo universo. Ruim é que esse universo só vai durar até às 14h, porque vai ficar sem bateria. E nenhum cabo desse universo vai funcionar no universo 2.0.”
Guy Kawasaki

“A energia solar precisa de um grande volume de baterias estacionárias para se tornar viável”
Elon Musk

O objetivo desta seção é aprofundar o conceito de bateria, explicar o porquê das baterias serem imprescindíveis para o progresso humano e como as baterias atuais ainda são ineficientes. Uma consequência direta disso é o atraso de um aumento significativo na energia capturada, ou em outras palavras, o atraso de progresso humano.

2.1. O que é uma bateria?

“Uma bateria, por definição, é um amontoado de células. E a célula é uma pequena lata de produtos químicos. O desafio é pegar uma célula de alta energia, e um grande número delas e combiná-las com segurança em uma grande bateria.”
Elon Musk

De acordo com o Wikipédia: ”Uma bateria é um aparelho ou dispositivo que transforma em corrente elétrica a energia desenvolvida numa reação química. Cada célula de uma bateria contém um terminal positivo (cátodo) e um terminal negativo (ânodo). O processo químico de troca de elétrons é conhecido como oxirredução.”

Essa é a forma estrita e literal de se definir uma bateria, focada na descrição do processo químico e dos componentes que formam uma bateria. Essencialmente, uma bateria é um dispositivo que converte a energia química diretamente em energia elétrica. É este processo que gera energia para o seu celular e ajuda o seu carro a dar partida todo dia.

Para que serve uma bateria?

De uma forma mais ampla e abstrata, podemos pensar que uma bateria é um recipiente que te permite armazenar e transportar energia no tempo e espaço. Ou seja, no sentido amplo, uma bateria é um reservatório de energia portátil que nos permite levar a energia de um lugar a outro e através do tempo sem grandes perdas.

Neste ponto de vista mais amplo, que será o utilizado na sequência do artigo, qualquer forma de armazenamento de energia que permite o deslocamento espacial desta energia em pequenas unidades móveis pode ser considerada uma bateria. Isso significa dizer, por exemplo, que o gás presente no isqueiro também é uma bateria que armazena a energia na forma de butano, transportada no bolso e utilizada a partir da combustão on demand. Na prática, a humanidade criou uma mini-usina de geração de energia térmica via combustão de butano. As plantas e árvores também são usinas de energia, com os frutos, frutas e grãos sendo baterias de solar que a humanidade vem utilizando há milhares de anos. Ou seja, a fotossíntese converte energia solar em crescimento vegetal, que pode ser vendido no futuro como alimento e lenha.

Sintetizando: este texto usa o termo bateria no sentido amplo e não no sentido estrito e define que uma bateria é “um reservatório de energia portátil que nos permite levar a energia de um lugar a outro, ou através do tempo, sem grandes perdas”. Neste sentido, a gasolina é uma bateria, o alumínio é uma bateria, a água armazenada em uma barragem que será convertida em eletricidade é uma bateria, a vaca que converte a matéria orgânica em proteína e gordura é uma bateria e a fruta que converte a energia solar em frutose também.

2.2. Por que é importante conseguir armazenar energia?

“Eu monto na minha bicicleta para o transporte muitas vezes — ocasionalmente eu monto nela por diversão. Mas eu também tenho uma bicicleta conectada a um gerador que está ligada à minha bateria solar, então se eu andar de 15 minutos com força na minha bicicleta, isso é energia suficiente para torradas ou recarregar o meu computador.”
Ed Begley, Jr.

Esta seção se relaciona diretamente com a seção sobre “energia desperdiçada” da primeira parte do texto. Basicamente, é importante conseguir armazenar em reservatórios móveis porque transportar eletricidade é caro. A implementação de linhas de transmissão é cara e demorada. Um projeto energético concluído pode ficar meses ou até anos desconectado da rede, efetivamente não conseguindo vender o seu produto (eletricidade), pois a construção dessas linhas de transmissão não depende do empreendedor e sim do Estado.

Vamos refletir um pouco no exemplo mais radical sobre o tema: por que o deserto do Saara não está atualmente parcialmente coberto de painéis solares? Este é o exemplo escolhido, pois não estamos só querendo suprir toda a demanda atual de energia necessária na região das bordas do Saara, mas sim capturar o máximo de energia possível, visto a relação “quantidade de energia capturada X avanço de estágio da civilização” demonstrada na seção 1 deste texto. Nesse sentido, cobrir de painéis solares uma região do tamanho do Novo México já geraria a mesma quantidade de energia que a humanidade utiliza em um ano.

Imagem que mostra o espaço do Saara que teria que ser coberto de painéis solares para abastecer o mundo, a União Europeia e a Alemanha.

Primeiro motivo: não existem mercados consumidores próximos que justificariam esse empreendimento. A Europa é relativamente próxima, mas a Espanha já apresenta um alto potencial de geração de energia solar. Os países africanos na região também não conseguiriam absorver toda essa energia.

Segundo motivo: mesmo que existissem grandes mercados consumidores nas bordas do Saara, ainda assim seria necessário a implementação de toda a infraestrutura de transmissão desta energia solar gerada. Ou seja, não seria necessário apenas a instalação de milhões de placas de energia solar, mas também a construção das linhas de transmissão, acarretando um custo significativamente maior.

Terceiro motivo: a transmissão da energia elétrica também é um processo que luta contra as leis da física e, portanto, ele é inerentemente ineficaz. Ou seja, a transmissão de energias via fiação elétrica esbarra no Efeito Joule, uma lei da física que expressa a relação entre a corrente elétrica que percorre um condutor e o calor gerado. O lado positivo desta lei da física é que quando a corrente elétrica atravessa um condutor ela provoca um aumento de temperatura nele. Este efeito é usado em aquecedores, fornos, fogões, iluminação, ferros de passar, etc. O lado negativo é que este calor representa uma perda de energia.

O Efeito Joule diz que a energia elétrica que se transforma em calor em um condutor é diretamente proporcional à resistência elétrica e ao quadrado da intensidade da corrente e ao tempo de passagem dessa corrente. A resistência elétrica de um condutor é basicamente a multiplicação da resistência do material do cabo vezes a distância, o que explica porque é impossível fazer a transmissão de energia elétrica sem perdas consideráveis pelo caminho: as leis da física não permitem

Além disso, a construção dessas linhas de transmissão geralmente é de responsabilidade do Estado, e tendem a demorar para serem estendidas até determinada região. Atrasos são comuns e podem tornar um empreendimento de geração de energia inviável economicamente. Ou, em outras palavras, na visão do empreendedor não é suficiente que a sua usina seja conectada nas linhas de transmissão no futuro se a dívida contraída para estruturar o empreendimento fizer a empresa quebrar antes disso. Os cálculos de viabilidade sempre consideram um tempo determinado para que o empreendimento comece a dar lucro, caso isso não ocorra, toda a planilha de viabilidade financeira perde validade. Ou seja, é mais difícil modelar um empreendimento se uma das variáveis não depende de você.

OK, mas o deserto do Saara é longe de tudo. E no Brasil?

Atualmente, o Brasil está construindo o maior complexo de energia solar da América Latina, com a implementação de 14 usinas de geração solar no norte de Minas Gerais, região com bastante incidência solar. O norte de Minas e os estados do Nordeste são regiões com forte potencial de geração de energia eólica. Isso só é possível, pois o Brasil já conta com linhas de transmissão que cortam o Brasil de norte a sul.

Mas mesmo o Brasil já contando com linhas de transmissão, ainda temos um grande potencial solar desperdiçado. Isso pode ser observado no mapa abaixo, onde os pontos brancos são usinas de geração de energia solar. A região do nordeste até conta com duas usinas solares, mas a verdade é que o aproveitamento está muito abaixo do potencial da região, que poderia abrigar tranquilamente 10x ou até mesmo 100x mais usinas e aproveitar mais a sua incidência solar. Hoje, a maioria dos empreendimentos solares estão na região Centro Oeste e Sudeste, que são regiões tropicais e não equatoriais, e que possuem uma menor incidência de radiação solar.

Grade de linhas de transmissão e usinas hidrelétricas, térmicas, eólicas e solares de geração de energia do Brasil.

Também vale destacar a miríade de pequenos pontos verdes que representam os parques eólicos e como eles existem seguindo sempre as linhas de transmissão. Será que é só onde tem linha de transmissão que existe vento ou será que nós estamos desperdiçando todo o vento que existe em outras localidades?

A questão das baterias, ou “o motivo Dilma”

Outro motivo menos comentado para que os projetos de energias verdes não decolem é que não é possível estocar a energia gerada em baterias enquanto as linhas de transmissão não chegam até a localidade das usinas solares e eólicas. Em outras palavras, não é possível estocar os fótons da energia solar (e nem o vento, como já nos informou uma grande pensadora brasileira contemporânea). Ou seja, essa energia é desperdiçada em um momento em que o empreendedor já investiu provavelmente centenas de milhões de reais na construção da usina e não tem como equilibrar as contas antes de poder vender essa energia. Essa energia já pode ser capturada, mas por falta de transporte ela é desperdiçada ao invés de ser utilizada. Uma solução para essas questões seria conseguir armazenar essa energia para que ela não fosse desperdiçada e tivesse uso desde o início do empreendimento. Ainda mais se existe uma bateria que consegue teletransportar essa energia para outros lugares (como veremos na 3ª seção).

Mas, e por que não é possível armazenar essa energia solar ou eólica em baterias? Em outras palavras, por que não é possível estocar vento?

Sintetizando: Basicamente, é importante para os empreendimentos de energia renovável conseguir armazenar a energia capturada. Isso significaria que, no início da vida do empreendimento, ele não precisaria depender da existência das linhas de transmissão para a ligação com a rede elétrica. Quando for possível armazenar a energia capturada, uma nova usina passa a gerar receita assim que ela ficar pronta. Conseguir armazenar a energia capturada permitirá a implementação de projetos que poderão capturar energia abundante que está distante do mercado consumidor. No final das contas, é de fato importante conseguir estocar (a energia gerada pelo) vento.

2.3. As baterias elétricas

Eu levei meu iPod para a Apple Store aqui em Manhattan e pedi a eles para substituir a bateria. E eles me explicaram que a Apple não oferece um serviço para substituir a bateria no iPod, e minha melhor aposta era comprar um novo iPod.
Casey Neistat

As baterias elétricas são as baterias no sentido estrito que nós estamos acostumados a lidar.

Elas são divididas em duas categorias e podem ser primárias (só se usa uma vez) ou recarregáveis.

As baterias primárias são as mais comuns para equipamentos portáteis que consomem pouca energia e que são usados intermitentemente, como em alarmes e controles de TV. Essas baterias primárias não podem ser recarregadas, pois as reações químicas presentes nelas não são facilmente reversíveis e os materiais não retornam a sua forma original.

As baterias recarregáveis precisam ser carregadas antes da primeira utilização, pois geralmente são construídas com materiais em estado descarregado. Essas baterias são recarregáveis porque a corrente elétrica consegue reverter as reações químicas. A bateria recarregável mais antiga é a bateria de chumbo-ácido, que é amplamente utilizada em carros e barcos.

Outras baterias recarregáveis amplamente utilizadas são as que alimentam telefones celulares e computadores, como as baterias de níquel-cadmio (NiCd), de níquel-zinco (NiZN) e de íon-lítio (íon-Li).

As baterias apresentam performance que decai com o passar do tempo, visto que as reações químicas não são 100% revertidas. Isso significa que ao final da sua vida útil, uma bateria não é mais recarregável.

Pensando na rede elétrica como um todo, baterias até poderiam ser utilizadas para armazenar energia em níveis industriais quando a rede está com excesso de energia disponível e vender energia para a rede, quando a energia está em falta. Já existem baterias elétricas que estão sendo usadas para armazenamento de energia excedente da rede elétrica ao nível industrial e na escala da rede. O armazenamento de energia em escala de rede prevê o uso em grande escala de baterias para coletar e armazenar energia da rede ou de uma usina e, em seguida, descarregar essa energia para fornecer eletricidade ou outros serviços de rede, quando necessário. O armazenamento de energia em escala da rede elétrica será um componente cada vez mais importante das redes inteligentes de fornecimento de energia, ajudando a balanceá-las.

2.3.1. Baterias de Níquel-Cádmio (NiCd)

As baterias de NiCd são do tipo recarregável e são utilizadas nos telefones celulares. Este tipo de bateria é considerado antigo, e atualmente vem sendo substituído pelas baterias de íon de lítio.

A bateria de NiCd foi concebida originalmente em 1899, ou seja, é uma tecnologia velha, e o descarte incorreto delas representa um risco ambiental, visto que o cádmio é um metal pesado bastante tóxico. As pilhas de NiCd são mais baratas, porém apresentam menor vida útil, menor capacidade de carga e viciam (sofrem com o chamado “efeito memória”).

2.3.2. Baterias de Lítio (Li-íon)

As baterias de lítio armazenam até três vezes mais energia que uma bateria de NiCd. Outra vantagem das baterias de lítio é que elas não viciam (ou seja, elas não têm efeito memória).

As primeiras baterias de lítio ficaram disponíveis comercialmente somente a partir de 1970

Dois exemplos da utilização de baterias de lítio na rede elétrica atual.

A Hornsdela Powe Reserve, é a maior usina de armazenamento de energia via bateria de lítio, com capacidade de 100MW e está em operação na Austrália desde dezembro de 2017. Essa usina de armazenamento de energia fornece dois serviços distintos: I) arbitragem energética e II) reserva de contingência, para o caso de falhas na rede elétrica australiana.

Outro exemplo de usina de armazenamento de energia é o projeto Mountain Power em Vermont, que também utiliza baterias de lítio. Significativamente menor (4MW), este projeto foi inaugurado em 2015 e conta também com a instalação de painéis solares capazes de gerar 2MW de energia. A instalação possui duas funções: 1) energia de reserva e recursos de micro-grade; e 2) reduções de cobrança de demanda. O sistema que soma a energia solar com o armazenamento permite que a concessionária crie uma micro-rede, que fornece energia para uma instalação crítica, mesmo quando o resto da rede está desativado.

O que podemos levar destes exemplos, na opinião do autor, é que as baterias ainda não são opções viáveis para a utilização na rede energética em larga escala, se não elas já estariam mais difundidas. É verdade que isto vem se modificando, e o intervalo entre 2012 e 2020 viu uma redução de 82% no custo de uma bateria de lítio. Se essa tendência continuar, é provável que a utilização destas baterias aumente consideravelmente.

Considerando a necessidade de expansão da fabricação de baterias de lítio, a Tesla vem construíndo as “Gigafábricas”. Como o nome diz, as Gigafábricas são fábricas gigantescas que visam aumentar exponencialmente a produção de baterias de lítio, que são um dos principais gargalos para a comercialização em escala dos carros elétricos da Tesla. Atualmente existem quatro Gigafábricas em operação (três nos Estados Unidos e uma na China) e mais duas em construção (em Berlim e no Texas). Estimativas mostram que seriam necessárias mais de 100 Gigafábricas para suprir a demanda mundial por eletricidade.

Um grande gargalo encontrado para a expansão da produção de baterias de lítio é que este elemento é escasso na natureza. Isso significa que não é possível aumentar significativamente a produção deste elemento com as tecnologias atuais. O lítio é encontrado em alguns tipos de rochas em composições baixas e também é encontrado de maneira mais concentrada nos salares do altiplano andino (Bolívia, Chile e Argentina, que juntos possuem ~75% das reservas mundiais de lítio). A Austrália também é um grande produtor mundial de lítio, apesar das suas reservas não serem tão abundantes como os países andinos. A mineração das rochas é ineficiente e a mineração dos salares é simples e vem sendo executada no Chile (maior produtor mundial de lítio) e na Argentina. Na Bolívia, por outro lado, a exploração dos salares não teve início de maneira significativa. Para quem gosta de “teorias da conspiração”, não é difícil ligar os pontos e ver a relação entre a Bolívia não querer explorar suas reservas de lítio com a ajuda de empresas americanas e o golpe de Estado que ocorreu no país há alguns anos.

Maiores reservas de lítio do mundo. Em verde são as reservas que podem ser encontradas em salmouras associadas aos salares, em marrom são as reservas associadas as rochas conhecidas como pegmatitos e em cinza as reservas associadas as argilas.
O tweet original foi apagado, mas a internet nunca esquece. O fã-clube do Musk pode até argumentar que foi só uma brincadeira, mas como diz a sabedoria popular “toda brincadeira tem um fundo de verdade” e um dos gargalos da produção da Tesla de fato são as baterias de lítio. Sem contar que qualquer sul-americano com o mínimo de conhecimento histórico sabe que os EUA interferirem na região não é nada fora do padrão.

A realidade é que se não forem inventadas novas tecnologias de obtenção e enriquecimento de lítio ou baterias a base de algum outro elemento, a escalabilidade das baterias elétricas deve ser questionada. A imagem abaixo mostra a evolução das baterias elétricas em função da sua densidade volumétrica (a quantidade de energia que cabe em uma unidade de volume) e da sua densidade gravimétrica (a quantidade de energia que cabe em uma unidade de massa) e mostra que a bateria de lítio-íon é apresenta a melhor relação entre o tamanho da bateria e seu peso, mostrando que, como um todo, as baterias elétricas ainda não “chegaram lá”. Elas já são importantes em nichos específicos, mas ainda não são parte da base da sociedade como a rede elétrica. Se as baterias já tivessem “chegado lá”, fios não seriam necessários.

2.3.3. A promessa não cumprida das baterias elétricas e, consequentemente, das energias verdes

Enfim, pode-se dizer que as baterias elétricas (as baterias em sentido estrito) não conseguem armazenar toda a energia elétrica excedente que o homem captura (e poderia capturar), e que esse é, no mínimo, um dos motivos para a humanidade não ter atingido ainda uma situação de abundância energética. Se ou quando as baterias conseguirem armazenar energia elétrica de uma maneira economicamente viável em larga escala, a consequência provavelmente será uma revolução energética como foi o domínio do fogo e dos combustíveis fósseis. Esta revolução permitirá que o ser humano aumente a quantidade de energia capturada em uma ordem de grandeza, gerando efeitos de segunda ordem positivos ainda inimagináveis.

Quando as baterias armazenarem parte significativa da energia capturada, usinas solares poderão ser instaladas por todo o deserto do Saara, por todo o nordeste brasileiro, por todo Oriente Médio e demais desertos do mundo. O mesmo é verdade para a energia hidroelétricas, eólica e geotermal: quando for possível armazenar a energia capturada em locais ermos (como cachoeiras em regiões desabitadas, por exemplo) e for barato o transporte desta energia armazenada, as energias verdes finalmente florescerão.

Para entender melhor o contexto “baterias e energia” eu conversei com um engenheiro mecânico com doutorado pelo ITA e que trabalha com energias renováveis. Supostamente, as baterias só serão necessárias se algum dia uma boa porcentagem da matriz energética for composta por energia solar e eólica. Mas a questão que fica é a velha questão de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? (um adendo: a resposta é o ovo, pois répteis já botavam ovo antes do surgimento das aves). Será que as baterias só serão realmente necessárias quando a matriz energética mudar ou será que a matriz energética não muda justamente pela falta de baterias?

Se existissem baterias realmente eficientes, nós poderíamos construir usinas de energia solar, geotermal, eólica e hidroelétrica em lugares ermos sem a preocupação com a conexão destes lugares com o mercado consumidor. Efetivamente, isso significaria que assim que as usinas estivessem prontas, elas já estariam gerando valor para o empreendedor. Isto ajuda a tornar estes empreendimentos viáveis do ponto de vista econômico, visto que atualmente a usina só começa a gerar valor para o empreendedor quando ela é conectada a rede de energia do Estado. Ou seja, durante um tempo indeterminado, o empreendedor precisa modelar a viabilidade econômica do seu empreendimento sem conseguir vender a energia que ele poderia estar capturando. Em outras palavras, barateiam a produção de energia enormemente e isso faz com que se torne um mercado interessante para muitos empreendedores. Então no caso de quem precisa vir primeiro entre as baterias e geração dessas energias, para mim, fica claro que é a falta de bateria que reduz a viabilidade econômica e mina o potencial que essas energias “verdes” tem de ganhar escala.

Sintetizando: As baterias elétricas permitem diversas comodidades da vida moderna, como os celulares e os controles remotos. No entanto, a realidade é que como tecnologia as baterias ainda não concretizaram todo o seu potencial. Isso é comprovado pelo fato de não ser possível viabilizar empreendimentos de energia renovável como solar, hidrotermal ou eólica e armazenar a energia para posteriormente transportar ela via bateria para o mercado consumidor. Isto ainda é mais um sonho que uma realidade.

2.4. A Bateria Gasolina

“O carvão, o petróleo e a gasolina são chamados de combustíveis fósseis, porque são principalmente feitos dos restos fósseis dos seres vivos há muito tempo. A energia química dentro deles é uma espécie de luz solar armazenada originalmente acumulada por plantas antigas. Nossa civilização corre, queimando os restos de criaturas humildes que habitaram o planeta centenas de milhões de anos antes dos primeiros humanos entraram em cena. Como algum culto de canibal horrível, subsistimos nos cadáveres de nossos ancestrais e parentes distantes.”
Carl Sagan

Se uma bateria é um “reservatório portátil de energia”, então não foram só as baterias elétricas que mudaram o mundo.
Para ilustrar isso, e explicar a importância da bateria gasolina na construção do mundo moderno, uma abordagem interessante é entender a história dos automóveis no início do século XX (1900s)

2.4.1. Carruagem sem cavalo

Os carros elétricos podem até parecer veículos futuristas, mas na realidade eles são símbolos do passado. Na virada do século XIX (1800s) para o século XX (1900s), o cavalo ainda era o principal meio de transporte da humanidade. Um grande problema deste meio de transporte é que todas as ruas ficavam cheias de coco de cavalo, além da necessidade de alimentação e estábulos. O avanço tecnológico tentou resolver estes problemas e foram inventados automóveis com três tipos diferentes de motores: a vapor, a gasolina ou elétrico.

O vapor era uma fonte de energia testada e comprovada, e era confiável para abastecer fábricas e trens. Alguns dos primeiros veículos automotores no final dos anos 1700 dependiam do vapor; no entanto, demorou até a década de 1870 para que essa tecnologia fosse utilizada nos automóveis. Isso porque o vapor não era muito prático para veículos pessoais. Os veículos a vapor exigiam longos tempos de inicialização — às vezes até 45 minutos no frio — e precisavam ser recarregados com água, limitando seu alcance.

Os automóveis elétricos surgiram na mesma época dos automóveis a gasolina e parecia possuir vantagens sobre estes. Embora os carros a gasolina fossem promissores, eles apresentavam alguns problemas que impediam a sua adoção. Eles exigiam muito esforço manual para dirigir — trocar as marchas não era uma tarefa fácil e eles precisavam ser iniciados com uma manivela (o motor de partida ainda não havia sido inventado), tornando-os difíceis de operar. Eles também eram barulhentos e seu escapamento exalava gases desagradáveis. Ao contrário dos motores de combustão interna, os veículos elétricos eram fáceis de ligar, acelerar, frear, não havia escapamento e não tinham nada explodindo embaixo do assento. Como resultado dessa facilidade de uso, os carros elétricos pareciam um grande negócio no início de 1900.

Para as elites ricas de Paris e suas contrapartes em Nova York, a carruagem sem cavalos era obrigatória, e os motores elétricos eram a melhor escolha. Em 1900, existiam 4.192 veículos nas ruas nos EUA, sendo 1681 de carros a vapor; 1.575 de carros elétricos e 936 de carros com motores de combustão interna. Se você apenas quisesse se locomover pela cidade, o carro elétrico era um melhor opção — isto é, se você fosse rico o suficiente para pagar por um.

Os automóveis elétricos não tinham nenhum dos problemas associados ao vapor ou à gasolina. Eles eram silenciosos, fáceis de dirigir e não emitiam um poluente fedido como os outros carros da época. Os carros elétricos rapidamente se tornaram populares entre os residentes urbanos — especialmente as mulheres. Eles eram perfeitos para viagens curtas pela cidade (a autonomia era limitada pela tecnologia de bateria de chumbo-ácido), e as más condições das estradas fora das cidades significavam que poucos carros de qualquer tipo poderiam se aventurar mais longe. Isso significa que a questão da autonomia destes veículos não era importante.

À medida que mais pessoas obtiveram acesso à eletricidade na década de 1910, ficou mais

fácil recarregar os automóveis elétricos, aumentando sua popularidade em todas as esferas da vida.

Assim como hoje em dia, um dos desafios dos primeiros proprietários de veículos elétricos era onde carregá-los. Em 1910 os proprietários podiam instalar suas próprias estações de carregamento em sua propriedade, e um número crescente de oficinas de automóveis foi surgindo, permitindo que os carros elétricos carregassem durante a noite.

A produção de carros elétricos atingiu o pico em 1912. Fritchle, um dos maiores fabricantes de automóveis elétricos da época, por exemplo, construiu cerca de 198 veículos por ano entre 1909 e 1914. Os automóveis de Fritchle eram famosos por possuírem uma grande autonomia, que era usada nas propagandas para vender mais, ilustrando como a autonomia sempre foi uma questão importante.

Mas, mesmo com o sucesso dos automóveis de Fritchle, enquanto na virada do século os carros elétricos constituíam uma boa proporção do mercado, os avanços em motores a gasolina veículos significava uma participação de mercado cada vez menor para os carros elétricos com o passar do tempo.

2.4.2. O que fez os carros a gasolina ganharem?

A resposta simples é: o Modelo T, seu preço mais competitivo, e a maior autonomia que os carros com motor a gasolina possuíam em comparação aos carros elétricos.

Henry Ford apresentou o Modelo T produzido em massa e movido a gasolina em 1908. Em 1912, um carro a gasolina custava algo entre $650 e $850 (dependendo da fonte), enquanto o automóvel elétrico médio era vendido por $1.750. O Modelo T é um marco na história mundial e simboliza a passagem da construção artesanal dos carros para um processo de linha de montagem. O seu projeto foi feito considerando a facilidade e praticidade para o processo de manufatura na linha de montagem. Antes, cada operário era responsável por todas as etapas do processo produtivo, com as mudanças efetuadas por Ford, os operários se especializaram e se tornaram responsáveis por etapas distintas. Ford criou um sistema de esteiras, que movimentava o carro em produção pela fábrica, passando no posto de trabalho de cada um dos funcionários. Este processo aumentou significativamente a produtividade e, como resultado, o custo unitário de um Modelo T se tornou mais baixo que o de seus concorrentes. Inicialmente, em 1912, os Modelos T custavam $850 e em 1927, último ano de sua fabricação, o preço havia caído para $290.

O seu motor era de quatro cilindros de 2,9 litros, que gerava 20cv de potência. Com isso, a sua velocidade máxima era de algo entre 65 a 85 km/h (dependendo da fonte). Para os padrões atuais parece pouco, mas para um cidadão médio dos anos 1910 isso significava efetivamente sair da era da “velocidade do cavalo”. Até a linha aplicação da linha de montagem no Modelo T, em média a humanidade estava restrita a mobilidade de um cavalo, que até consegue atingir velocidades entre 48–64 km/h, mas não consegue manter esta velocidade por muito tempo.

Um Ford Modelo T ao lado de (o que parece ser) uma charrete movida por 4 cavalos em um terreno rural americano.

Em 1912, o primeiro motor de arranque elétrico foi inventado, eliminando a necessidade de uma manivela na partida do carro. Essa invenção tornou o automóvel movido a gasolina ainda mais atraente para os motoristas que ainda preferiam carros elétricos. A descoberta de petróleo bruto do Texas também reduziu o preço da gasolina, tornando a propriedade e a manutenção do carro a gasolina mais acessíveis ao consumidor médio.

Na década de 1920, os EUA já possuíam um sistema de estradas melhor, que conectavam as cidades. Com a descoberta do petróleo bruto do Texas, a gasolina se tornou barata e disponível para os americanos rurais. Postos de abastecimento surgiram por todo o país neste período. Em comparação, poucos americanos fora das cidades tinham acesso à eletricidade naquela época. Isso, somado com a falta de autonomia e infraestrutura para o abastecimento na zona rural, fez as pessoas adotarem os veículos a gasolina e não a eletricidade. No meio da década de 1930s os veículos elétricos já haviam praticamente desaparecidos.

O custo elevado, a baixa velocidade máxima e o curto alcance dos veículos elétricos a bateria, em comparação com os veículos com motor de combustão interna do século XX, levaram a um declínio mundial em seu uso como carros motorizados particulares.

2.4.3. A Gasolina

A gasolina é composta predominantemente por octano, um hidrocarboneto com oito átomos de carbono na sua molécula (C₈H₁₈). Como dito acima, um dos principais motivos que levou o motor a gasolina a superar o motor elétrico no início do século passado foi a maior autonomia que a gasolina dava aos automóveis em comparação as baterias elétricas. Numa comparação com outros combustíveis, a gasolina apresente maior calor de combustão, ou, em outras palavras, ela libera melhor a energia armazenada na forma química. Essa excelente transformação de energia química em calor de combustão fez com que os horizontes do ser humano médio se expandisse no século passado. Viagens se tornaram comuns e acessíveis a qualquer um e o mundo se tornou mais conectado.

Não são apenas os automóveis que utilizam os derivados de petróleo, os navios também deixaram as caldeiras a vapor e passaram a utilizar produtos derivados do petróleo para locomoção. No caso dos navios, ao invés da gasolina, o derivado de petróleo utilizado é conhecido como óleo combustível e é o resíduo no processo de destilação fracionada que separa as frações mais leves (como a gasolina, a nafta e o querosene). Da mesma forma, o avião utiliza o querosene de aviação, um derivado de petróleo composto geralmente de algo entre 9 e 13 átomos de carbono na sua molécula.

Ilustração do processo de destilação fracionada com todos os derivados de petróleo obtidos da destilação fracionada do petróleo.

Estes derivados do petróleo (gasolina, querosene e óleo combustível) ajudam a explicar a importância que o petróleo tem até os dias de hoje. Basicamente, todo o transporte terrestre, aéreo e marinho, todas as rotas comerciais, todos os equipamentos militares, tudo é movido pelos derivados do petróleo. Sim, existem exceções, como submarinos nucleares, barcos a vela e carros elétricos, mas eles são a exceção e não foram os responsáveis por formar as feições do mundo moderno. O petróleo se tornou tão importante, que hoje em dia ele é o lastro do sistema financeiro mundial, num arranjo conhecido como petrodólar.

Um exemplo do lastro do pétrodolar em ação. Se o Bitcoin é lastreado na capacidade computacional da rede e na energia utilizada, o petrodólar é lastreado em guerras de agressão e apoio a uma das piores ditaduras do mundo, a Arábia Saudita

Não vou me aprofundar no petrodolar porque não é o escopo do texto e seria uma tangente gigantesca para explicar um assunto extremamente complexo. Numa síntese reducionista: o petrodólar é o arranjo em que os Estados Unidos imprimem dinheiro para comprar petróleo da Arábia Saudita. Com isso esse dinheiro passa a estar vinculado com algo real e não somente no ar. Em troca deste arranjo, a Arábia Saudita passou a comercializar o petróleo somente em dólar e a ser protegida pelos EUA, o que ajuda a explicar as diversas guerras que os EUA se envolveram no Oriente Médio a partir de meados dos anos 1970s, quando este arranjo foi feito.

Presença atual (divulgada) dos EUA no Oriente Médio. Eles devem estar levando “democracia e liberdade” para lá, risos.

De agora em diante eu vou usar o termo coloquial “gasolina” para me referir tanto a gasolina (octano) como ao óleo combustível e ao querosene por conveniência, considerando os três gasolina no sentido amplo.

Basicamente, a combustão da gasolina mudou e moldou o mundo. Ou seja, a “bateria gasolina” mudou o mundo. Isso aconteceu basicamente porque a gasolina é um reservatório de energia extremamente eficiente. Em uma comparação entre diferentes formas de “baterias”, foi observado que as células de lítio armazenam cerca de 690 watts-hora (Wh) por litro (L), enquanto 1 litro de etanol possui aproximadamente 6260Wh de energia e 1 litro de gasolina, cerca de 8890 Wh. Ou seja, as baterias de lítio perdem feio em termos de densidade energética da gasolina. São precisos 13 litros de bateria para substituir 1 litro de gasolina.

Densidade energética das baterias de lítio-íon, do etanol hidratado e da gasolina comum

Falar que a gasolina é mais tem mais densidade energética significa dizer que um mesmo volume de gasolina carrega muito mais energia que esse mesmo volume na forma de uma bateria elétrica. Como comparação, vamos pegar um caminhão tanque, com capacidade máxima de 50 mil litros de gasolina. Isso representa 444.500.000 Wh. Para que baterias de lítio substituíssem um caminhão tanque, seriam necessários 650 mil litros de bateria, ou 13 caminhões tanques com o mesmo volume.

Um exemplo da Bateria Gasolina e sua ampla utilização no nosso dia a dia

Sintetizando: A Bateria Gasolina moldou o último século. Graças a ela, existem os transportes marinho, terrestre e aéreo como nós os conhecemos hoje. A gasolina possui uma densidade energética significativamente superior a das baterias elétricas até hoje e por conta disso os carros com motor movidos a gasolina superaram ao longo de todo o século passado e seguem superando os carros elétricos neste século.

2.5. A Bateria Alumínio

“Como o mundo viu sua idade da pedra, sua idade do bronze e sua idade do ferro, ele pode, em pouco tempo, ter embarcado em uma era nova e ainda mais próspera — a era do alumínio.”
Autor desconhecido (se alguém souber de quem é me avisa para eu editar o texto)

“Passaram-se apenas 160 anos desde que o elemento alumínio foi descoberto e apenas 100 anos desde que um processo de produção viável foi estabelecido, e hoje mais alumínio é produzido a cada ano do que todos os outros metais não ferrosos juntos.”
The European Aluminium Association

Seguindo no tema de baterias no sentido amplo, esta seção apresenta a Islândia como exemplo de país com abundância energética que utiliza uma bateria (neste caso, o alumínio) para vender sua energia de forma portátil para outros países do mundo.

Assim como o reservatório das barragens e a gasolina, o alumínio é uma bateria. Isto porque a produção do alumínio utiliza bastante eletricidade, então na prática a produção de alumínio é a conversão de energia em valor. E esse valor pode ser transportado e utilizado em outros lugares. Pelo fato do alumínio precisar de muita energia para a sua produção, ele pode ser utilizado como uma bateria e transportar a energia para ser vendida em outros países.

2.5.1. Processo de produção do alumínio

Muitas pessoas se referem ao alumínio como “eletricidade sólida” devido a grande quantidade de energia que é necessária para transformar o seu ingrediente principal, a alumina, no metal puro alumínio. Cerca de um terço dos custos do processo de obtenção são gastos com energia.

A produção do alumínio começa com a mineração da matéria bruta, um mineral chamado bauxita, que nada mais é que um óxido de alumínio (Al₂O₃) de forma impura (a bauxita possui cerca de 35% a 55% de Al₂O₃). Quando a bauxita é refinada, o óxido de alumínio puro é conhecido como alumina. Essa alumina passa por uma purificação, sendo dissolvida em soda cáustica e filtrada. Um pó branco de alumina puro é obtido e usado para obter o alumínio através da eletrólise. Na eletrólise, a corrente elétrica na célula eletrolítica promove a redução da alumina e decanta o alumínio metálico no fundo da célula. O oxigênio liberado reage com o carbono do ânodo e vira dióxido de carbono. Ou seja, bauxita + eletricidade → alumínio.

Fundição de Alumínio da Alcoa localizada em Fjardaal, Islândia.

2.5.2. O caso da Islândia

A Islândia é um país que é uma ilha localizada em cima da divisão entre duas placas tectônicas e em cima de uma pluma mantélica (um tipo de vulcanismo de tamanho maior e origem diferente do vulcanismo mais comum. Se você quiser saber mais veja esse guia básico sobre vulcões). Isso significa que eles possuem uma fonte inesgotável de energia geotermal a sua disposição. Além de possuírem diversos rios com potencial hidroelétrico. De fato, fontes renováveis de energia são 85% da matriz energética da ilha, fazendo da Islândia o país que mais utiliza fontes renováveis do mundo.

Islandeses tomam banho em piscina termal na frente de uma usina geotermal

A Islândia pode produzir muito mais energia do que a sua pequena população de 364 mil habitantes consegue consumir. Mas essa energia não tem acesso ao mercado consumidor pelas vias tradicionais, pois ainda é inviável a utilização de cabos para a exportação desta energia para a Inglaterra e Europa continental. Ou seja, a Islândia possui largas quantidades de energia a sua disposição, porém a construção de linhas de transmissão que permitiriam que ela exportasse essa energia é inviável.

Na prática, esta energia não pode ser capturada na sua plenitude pela falta de mercado consumidor. Como a Islândia não consegue vender a energia diretamente, eles transformam ela em uma commodity e a transportam para o mundo. Basicamente, a Islândia usa a “Bateria Alumínio” para transformar energia em valor. “Nós estamos no meio do Atlântico Norte. Nós não estamos conectados ao continente e a rede europeia de energia. Então nós exportamos o alumínio na forma de energia” Bjarni Mar Gylfason, economista chefe da Federação de Indústrias da Islândia.

O custo da energia na Islândia é cerca de 30% mais barato do que em outros países produtores de alumínio, então diversos países construíram industrias de fundição da bauxita e transformação no metal alumínio com a utilização de muita energia na região. As companhias de fundição importam bauxita, a matéria-prima do alumínio, de países como os EUA, a Irlanda e a Austrália. A indústria do alumínio se aproveitou deste fato e hoje cerca de 70% da energia produzida na Islândia é utilizada por ela. O que ajuda a explicar como a Islândia consegue ser o país com a 12ª maior produção de alumínio mesmo sem possuir industria de mineração de bauxita, como a tabela abaixo mostra.

O governo da Islândia estima que apenas um quarto do potencial hidroelétrico e geotermal está sendo utilizado atualmente e existe o interesse tanto do governo como das companhias de expandia a produção de alumínio no país.

Usina hidroelétrica na Islândia

Sintetizando: a Islândia transforma sua energia excedente em alumínio e o exporta para o mundo. A Bateria Alumínio permite que a Islândia armazene a sua energia e a venda no mercado consumidor. Basicamente, esta bateria permite que a Islândia capture mais energia. Efetivamente, a Bateria Alumínio é um jogo de soma não-zero com o resto da população da Islândia, que possui abundância energética.

2.6. A Bateria Dinheiro

“Pessoas demais gastam o dinheiro que ganham para comprar coisas que elas não querem, para impressionar pessoas que elas não gostam.”
Will Rogers

“Dinheiro
Cai fora
Você consegue um bom emprego com um bom salário e está ok
Dinheiro
É uma gasolina
Pegue aquele dinheiro com as duas mãos e faça um estoque…”
Roger Waters, Money — The Dark Side of The Moon, Pink Floyd

Você já se perguntou o que é o dinheiro? Que o dinheiro “é como eu compro as minhas coisas” todos nós sabemos, mas você já parou para pensar mais profundamente sobre ele? “O que é o dinheiro” é uma pergunta filosófica-conceitual que muitos bitcoinheiros já se debruçaram e continuam se debruçando.

Existem muitas respostas válidas para essa pergunta e de uma maneira simplista, dinheiro é uma representação aproximada de valor. Caso você queira se aprofundar sobre essa questão, nós recomendamos: o texto clássico “Shelling Out: As Origens do Dinheiro”, que pode ser encontrado traduzido por completo aqui e resumido aqui e a tradução do texto “Why Bitcoin Matters”, que também possui uma ótima explicação sobre o tema. Existem também a podcast do Robert Breedlove que chama “What is Money?” e se dedica a essa pergunta de “o que é dinheiro?”.

Para manter o foco deste texto, nós vamos se ater a visão simplificada do dinheiro como “a tecnologia que permite o armazenamento de valor gerado como fruto do nosso trabalho e o transporte deste valor através do tempo e espaço”.

Como assim? Vamos pensar que você tem um pomar de maçã. Esse seu pomar gera valor para você na forma de maçãs (quando você vende elas). Mas essas maçãs só representam valor por um certo período, pois depois elas apodrecerão. Então caso não existisse uma maneira de converter essas maças em valor, o valor gerado por estas maçãs teria o prazo de valida delas e tenderia a zero com o tempo. Como as maçãs apodrecem, não da para imaginar que você poderia trocar todas elas com uma mesma pessoa, visto que ela também sabe que maçãs apodrecem. Você só conseguiria trocar suas maçãs com pessoas que tivessem interesse nelas na janela temporal em que elas estão maduras e não podres. E só conseguiria realizar essa troca caso elas tivessem algo que também fosse do seu interesse. Complicado né?

A tecnologia dinheiro solucionou essa questão ao criar um “item” que I) todos atribuem valor, e que, portanto, permite trocas entre todos, e II) que não apodrece (e que, portanto, permite ao seu dono o transporte de valor para o futuro).

No Brasil os índios e os portugueses trocavam bens (escambo), pois ainda não existia um dinheiro comum a ambos.

Em outras palavras: caso não existisse o dinheiro, as pessoas poupariam significativamente menos para o futuro, pois não haveriam boas maneiras de se poupar. As maças até poderiam ser trocadas por um porco no mercado da cidade, mas essa ainda é uma maneira pouco eficiente de se armazenar o seu trabalho ao longo do tempo, afinal porcos podem ficar doentes, serem roubados por vizinhos, caçados por lobos ou mesmo morrer de velhice. O fato de ser possível armazenar o excedente do nosso trabalho em algo que preservará o valor no futuro (o nome disso é “Reserva de Valor”) que fez o ser humano trabalhar mais que somente o mínimo possível para a sua própria subsistência (ou nível pouco superior a subsistência, com o inicio da agricultura e o armazenamento de grãos), pois criou os incentivos para isso.

Existem um conceito chamado número de Dunbar. Do wikipédia “O número de Dunbar define o limite cognitivo teórico do número de pessoas com as quais um indivíduo pode manter relações sociais estáveis, ou seja, uma relação onde o indivíduo conhece cada membro do grupo e sabe identificar em que relação cada indivíduo se encontra com os outros indivíduos do grupo.[1] Proposto por Robin Dunbar, esse número teórico varia entre 100 e 230 pessoas e tem sido constantemente citado em pesquisas da antropologia. Deve-se notar que o tamanho de pequenas comunidades — tribos, aldeias, grupos de interesse comum — costuma se manter nessa faixa.”

É graças ao dinheiro que foi possível existir cooperação em larga escala entre indivíduos que não se conhecem. Essa cooperação vai contra nosso limite cognitivo, ou seja, nós não conseguimos criar relações de confiança com tanta gente. O dinheiro permite justamente isso, que a um ser humano não precise confiar em outro para negociar e trocar valores. Ele permite a cooperação por entidades que não são da mesma família ou tribo, ou seja, fora do nosso limite cognitivo.

O dinheiro também intermedia todas as nossas negociações com nossos eu-do-futuro. “Será que eu devo tirar uma soneca depois do almoço todos os dias ou será melhor utilizar esse tempo para pegar um trabalho como freelancer e ganhar mais dinheiro para poder viajar para Europa?” Negociações como essa entre o seu “eu-do-presente” com “seu eu-do-futuro” são a base de qualquer ação sem resultado imediato, que são basicamente todas as ações que requerem disciplina e que tendem a gerar mais resultados longo prazo. Um exemplo que já é clichê sobre o tema é o do teste do marshmallow, que demonstra como a preferência temporal de uma criança tende a refletir no sucesso profissional, saúde e sucesso em geral desta pessoa. No livro “O Padrão Bitcoin” o autor se aprofunda por um capítulo inteiro sobre o tema e como os incentivos do sistema de dinheiro fiat influenciam esta preferência temporal, nos tornando mais focados no curto prazo. Resumidamente, pode-se dizer que sem um dinheiro que preserve valor, o ser humano não é incentivado a construir coisas de longo prazo.

O dinheiro também pode ser visto como uma bateria, pois ele permite ao ser humano armazenar o resultado da energia empregada na forma de trabalho para gerar valor. Ou seja, o dinheiro se enquandra perfeitamente na definição “um reservatório de energia portátil que nos permite levar a energia de um lugar a outro sem grandes perdas” que estamos utilizando para as baterias neste texto. Mas, ao invés de armazenar energia elétrica ou mesmo química (como no caso da gasolina), ele armazena a energia monetária gerada pelo trabalho do ser humano.

2.6.1 A Bateria Dinheiro ideal

Assim como toda bateria, a Bateria Dinheiro também possui suas especificações técnicas ideias. Essas características são bastante aprofundadas nos textos “Why Bitcoin Matters”, “Shelling Out: As Origens do Dinheiro” e “the bullish case for Bitcoin” e no livro “O Padrão Bitcoin”. Sintetizando e hipersimplificando, a Bateria Dinheiro ideal precisa ser: durável, portátil, fungível, verificável, escasso, divisível, resistente a censura e com histórico estabelecido.

Além disso, o dinheiro ideal precisa preservar o seu poder de compra no tempo (reserva de valor); precisa ser aceito por outras pessoas (meio de troca) e precisa ser usado como unidade de conta (você não pensa que sua casa vale 3 rebanhos de vaca, e sim que ela vale 200mil reais. Isso significa que “rebanhos” até tem um valor, mas não é dinheiro, enquanto o real é utilizado como unidade de conta).

2.6.2 Os problemas da Bateria Dinheiro utilizada atualmente

O “the bullish case for Bitcoin” classifica o dinheiro fiat de acordo com suas propriedades na tabela abaixo:

Basicamente, o dinheiro fiat tem características positivas para sua durabilidade, portabilidade, fungibilidade, verificabilidade, divisibilidade e tem um histórico relativamente bem estabelecido (o dinheiro está estruturado da maneira atual somente desde 1971). Porém, ele não é escasso e também não é resistente à censura, dois fatores que fazem do dinheiro fiat a ser melhorado.

Por que o dinheiro fiat não é escasso?

Primeiro vamos nos ater por algumas linhas sobre a escassez: a escassez é uma propriedade fundamental do dinheiro, e mais genericamente, de qualquer coisa que nós atribuímos valor.

Um exemplo de como a escassez gera valor são as nossas respectivas famílias. Os membros da sua família e amigos são comprovadamente escassos ou, em outras palavras, são exclusivos para você. Se algo acontecer com um deles e eles forem embora, você não pode recuperá-los e não pode criar uma cópia. Nós valorizamos os nossos familiares e amigos queridos porque eles são verdadeiramente únicos e inerentemente escassos. Já os seres humanos não são escassos, então quando 100 pessoas morrem em um atentado do Talibã no Afeganistão ou em um colapso de teto de fábrica com condições análogas à escravidão em Bangladesh, nós não ficamos chateados de verdade. Ou seja, nós não julgamos racionalmente que nossos familiares e amigos são “somente outro ser humano” e sim suas características únicas, e, portanto, escassas. A escassez significa que algo é irreplicável, característica importante de bons bens monetários, uma vez que ser replicável significa que o poder de compra armazenado deste bem pode ser diluído. Na analogia com a bateria, significa que o reservatório está tendo perdas, como uma bateria que se descarrega sozinha.

Como Nick Szabo escreveu, um bem monetário deve ter “custos imprevisíveis”. Em outras palavras, o bem não pode ser abundante, fácil de obter ou simples de ser produzido em quantidade. Talvez a escassez seja o principal atributo de uma reserva de valor, uma vez que explora o desejo humano inato de coletar e colecionar algo que é raro. A escassez é a fonte do valor original da reserva de valor.

E se a escassez é importante para um bem monetário, por que o nosso dinheiro fiat performa tão mal no critério “escassez”?

A resposta é que quando o lastro com o ouro foi rompido nos anos 1970s, o dinheiro perdeu conexão com a realidade. Isso significa que não é mais necessário que se trabalhem para conseguir minerar o ouro e com isso emitir papel moeda. Agora, para emitir papel moeda basta clicar em um botão no teclado do computador. Ou, como o Neel Kashkari, presidente do Banco Central de Minneapolis, diz: “existe uma quantidade infinita de dinheiro no FED”.

Se o valor de alguma coisa vem da sua escassez, nós podemos pensar que uma representação do seu valor pode ser encontrada na divisão deste bem pelo seu estoque a ser produzido (a quantidade dessa coisa que pode ser produzida num determinado espaço de tempo). Este é o princípio que baliza o modelo de stock-to-flow de precificação do Bitcoin proposto pelo PlanB inclusive. Ora, se a quantidade de dinheiro fiat que o FED possui é infinita, então o valor do dinheiro fiat tende a zero, uma vez que qualquer coisa dividida por infinito tem valor zero.

Note que se algo é dividido por infinito, eu nem preciso saber o valor deste algo para saber que ele é zero

Na prática, o que significa essa quantidade “infinita” de dinheiro que o FED possui e injetou na economia desde o início da pandemia?

Para responder essa pergunta, a imagem mais abaixo mostra os ativos totais dos principais Bancos Centrais do mundo. Esses ativos são comprados com o dinheiro impresso por estes BCs, então são uma boa representação da quantidade de dinheiro sendo impressa e colocada no sistema financeiro. Com a exceção do BC chinês (com dados tão confiáveis quanto dados chineses), os principais BCs deram saltos na quantidade de ativos entre 2020–2021. Os balanços dos principais bancos centrais mais do que multiplicaram diversas vezes, por exemplo o balanço do FED, que passou de ~$1 trilhões para ~$8 trilhões de ativos, enquanto que o ECB (Banco Central Europeu) passou de ~$1.5 trilhões para mais de $9 trilhões. De fato, destes, o mais “responsável” foi o Banco Central Chinês, que “só” passou de ~$1.5 trilhões para $5.9 trilhões, uma multiplicação de ~4x. Ou seja, existem agora pelo menos 5x mais dinheiro em circulação do que existia há 15 anos, o que significa que esta forma de dinheiro não pode ser considerada escassa, muito pelo contrário.

E quais são as consequências do dinheiro fiat não ser escasso?

Em poucas palavras, o dinheiro já existente na economia perde o seu valor. Ou, como o Michael Saylor coloca, ele é um gelo derretendo. A taxa de expansão da base monetária representa o quanto o gelo derrete anualmente. Ou seja, em um ano que a base monetária teve uma expansão de 10%, o dinheiro “derreteu” 10% do seu valor.

Por conta deste pensamento, faz sentido para qualquer pessoa que busca preservar o seu poder de compra no futuro procurar uma reserva de valor que I) não seja o dinheiro fiat (que está derretendo) e II) que preserve o poder de compra no longo prazo

Mas, e por que uma reserva de valor precisa ser escassa?

Para explicar porque uma reserva de valor deve ser escassa, vamos pensar na economia do seguinte país: os bens e ativos representados por 4 filhotes de labradores e com $10 em circulação representando a oferta monetária. Neste cenário hipotético, cada filhote vale $2,5. Caso este país resolva expandir a sua base monetária, ou seja, imprimir mais dinheiro, sem que novos filhotes de labradores sejam produzidos, o que ocorrerá é um aumento do preço de cada filhote. No exemplo, se a economia deste país passa a ter $20 em circulação e continua com somente 4 filhotes, cada filhote passou a valer $5. Se a economia deste país resolver acreditar que o seu dinheiro é infinito e imprimir mais $9990, cada cãozinho valerá $2500 e se a impressão for ao infinito, o valor dos cãezinhos também irá ao infinito (dividido por 4). Em outras palavras, a expansão da base monetária não tem ação no mundo real e não aumenta a produtividade de uma economia.

O dinheiro perder valor ao deixar de ser escasso está no cerne do colapso do Império Romano e do tráfico transatlântico de escravos, como o livro O Padrão Bitcoin e o texto “Mestres e Escravos do dinheiro” do Robert Breedlove explicam em maior profundidade.

Em Roma, como é característico de poderes centralizados, alguns dos imperadores sempre queriam mais do que o dinheiro que eles tinham acesso permitia. Seja mais vinhos e banquetes, ou mais exército e conquistas. Na fase da expansão do império isto era possível, pois as riquezas estavam sendo tomadas de outros povos em jogos de soma zero. Mas quando as fronteiras se estabilizam, Roma é obrigada a jogar um jogo de soma não-zero e a gerar suas próprias riquezas. A solução encontrada por estes imperadores foi expandir a base monetária do império, ou seja, eles “imprimiram dinheiro” da maneira que era possível na época.

Na época, imprimir dinheiro significava cortar as bordas das moedas para confiscar uma parte da prata e também mudar a quantidade de prata presente nos denários, que passaram de uma composição com mais de 95% (3.9g) de prata para uma composição com menos de 10% (0.2g) de prata, até que eles foram totalmente substituídos no século III d. C. Quando o dinheiro perde seu valor, as relações de trocas de uma sociedade sofrem abalos e muitas vezes se quebram, pois as pessoas sentem que estão recebendo algo sem valor em troca do seu trabalho. Isso também ocorreu com os soldados romanos que já não estavam mais dispostos a lutar e morrer por moedas inúteis e sem valor. Uma consequência disso é que as invasões barbaras que ocorreram nos séculos seguintes (III ao VIII) encontraram pouca resistência.

No caso do tráfico transatlântico de escravos (também conhecido como Holocaustro Africano), o dinheiro foi propositalmente utilizado como ferramenta de subjugação e domínio. Na África desta época, miçangas de vidro eram utilizadas como forma de dinheiro. Essas miçangas eram passadas de geração em geração e também eram utilizadas como meio de pagamento entre indivíduos. A tecnologia de produção de vidro ainda era bastante primitiva na região, então essas miçangas eram difíceis de produzir, o que as tornavam escassas em relação aos outros bens e, portanto, valiosas.

As miçangas de vidro africanas usadas como dinheiro.

Quando os exploradores europeus perceberam o valor que os africanos davam a estes itens, que podiam ser facilmente fabricados na Europa, eles basicamente perceberam poderem fabricar dinheiro aceito na região. Muitos artesões europeus passaram a organizar expedições para a África, enviando grandes quantidades de miçangas produzidas na Europa a um custo praticamente zero. Esse é o primeiro esquema de falsificação de dinheiro em larga escala conhecido e o seu resultado é o roubo da riqueza africana acumulada ao longo de gerações. Basicamente, a capacidade que certas pessoas tinham de tornar o dinheiro dos africanos algo não-escasso roubou a energia acumulada na Bateria Miçanga por todos os africanos. Em outras palavras, a Bateria Miçanga vazou e perdeu toda a energia armazenada. O resultado direto disso foi um continente empobrecido e mais fácil de saquear.

Imagem que ilustra o volume do comércio de escravos entre 1701–1810. A capacidade de falsificar o dinheiro dos africanos deu aos europeus uma arma econômica que enfraqueceu o continente inteiro, facilitando a subjugação.

Por que o dinheiro fiat não é resistente a censura?

Se o dinheiro fiat é um dinheiro governamental, isso significa que ele é centralizado. Diferentemente de coisas distribuídas ou descentralizadas, coisas centralizadas são censuráveis por definição. Isso ocorre porque é muito mais fácil controlar um único ponto do que uma rede com milhares ou mesmo milhões de pontos distintos. Ou seja, é mais fácil capturar e controlar um elefante do que uma correição de formigas ou um enxame de vespas. E o sistema financeiro atual é baseado em poucos pontos centrais (os Bancos Centrais), sendo extremamente centralizado, o que significa que ele é facilmente controlado e censurável.

O que é mais fácil de atacar? Um único ponto (por maior que ele seja) ou uma rede distribuída? Para ilustrar este conceito, os pontos de ataque para os diferentes tipos de rede foram marcados em vermelho

Um dinheiro censurável é um dinheiro pouco confiável, pois ele pode deixar de ser seu em apenas alguns cliques. Dizer isso é afirmar que a Bateria Dinheiro atualmente está inerentemente quebrada. Isso porque, pela nossa definição inicial, se uma bateria é um reservatório de energia portátil e se o dinheiro fiat pode sofrer censura, então o seu reservatório de energia deixou de ser transportável, tornando esta bateria pouco confiável.

Um exemplo claro do dinheiro fiat sendo utilizado para censura monetária são as sanções aplicadas pelos Estados Unidos contra os outros países. Você pode ou não concordar com a política externa dos EUA, você pode até não se importar minimamente com o assunto. O ponto aqui não é esse, e sim mostrar como o dinheiro fiat utilizado atualmente não respeita características básicas de suma importância para que a Bateria Dinheiro funcione como bateria na sua totalidade, que é ser resistente a censura.

Países que sofrem censura monetária dos EUA de alguma forma.

Em quantos países os EUA estão impondo sanções (efetivamente censura) no momento?

Atualmente, 6 países sofrem sansões completas dos EUA e 25 países possuem cidadãos, sejam oficiais do governo ou não, sofrendo sanções. Isso só é possível porque o dinheiro fiat é centralizado e controlado por alguns poucos “senhores feudais”, que controlam quem pode ou não utiliza-lo. Talvez você esteja tentando se convencer que os EUA e os outros políticos só fazem isso porque eles são bem intencionados e estão tentando fazer o melhor para o mundo. E que, portanto, é só agir corretamente que essa questão de censura não te afetará, visto que você não é um criminoso. Mas essa linha argumentativa não faz sentido algum porque não faz sentido acreditar que a pessoa que nasceu em algum país aleatório tem culpa de ter nascido em um país com regime totalitário. Basicamente, ninguém escolheu nascer onde nasceu. Ou seja, a grande maior dos venezuelanos, cubanos, argentinos, e etc., são apenas vítimas de regimes que se aproveitam dessa característica do dinheiro fiat ser facilmente censurável e, portanto, utilizável para fins políticos. O autor deste texto concorda com a Eiaine, que no texto “Rejeitando a Ortodoxia Nocoiner” que diz que “as sanções da ONU deveriam ser consideradas crimes de guerra”, uma vez que essas sanções atingem a população, acentuando a desigualdade e concentrando mais ainda o poder dos ditadores.

Os problemas da Bateria Dinheiro continuaram parecendo distante? Então você deve ter nascido do final dos anos 80s em diante. Eu digo isso porque eu nasci em 1988 e lembro muito pouco de quando o Collor literalmente sumiu com a poupança de toda a população brasileira da noite para o dia. Essa medida foi tomada para tentar combater a hiperinflação que assolava o país desde o final de década de 80. É importante ressaltar que, diferentemente de hoje, no início dos anos 1990s não existiam diversos produtos de investimento oferecido pelos bancos e a esmagadora maioria dos brasileiros armazenava TODO o seu dinheiro na poupança.

Noticias da época do governo Collor e do confisco da poupança dos brasileiros.

Se aprofundar na hiperinflação brasileira do final dos anos 80 e início da década de 1990s vai muito além do escopo desse texto. Um exemplo que ilustra bem o impacto da inflação é que o Brasil é um dos raros países do mundo em que existe o costume de fazer “compras do mês”. As compras do mês eram feitas originalmente porque nesta época de grande inflação, o poder de compra era corroído rapidamente ao longo de um mês, o que significava que o salário comprava muito mais coisas no início do mês do que no final. O gráfico abaixo mostra uma inflação média mensal de 16.4%, o que significa uma perda de poder de compra agressiva. Um salário de 100 reais no início do mês teria um poder de compra de cerca de 85.9% no final do mês, em média. Em março de 1990, a inflação foi de 82%, o que significa que o mesmo salário comprou um pouco mais da metade das coisas porque o custo de vida quase dobrou (e considerando o mês anterior, ele mais do que dobrou). Este é o motivo das despensas brasileiras também serem maiores que a média de países europeus e dos EUA, onde as pessoas costumam fazer várias compras ao longo do mês. (Quem tiver interesse de se aprofundar comece por estes vídeos 1, 2, 3, e 4).

Medidas oficiais da inflação mensal no Brasil de 1980 até 1995, ano da criação do Plano Real

Outro exemplo claro do dinheiro fiat sendo utilizado como forma de censura é o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, conseguir determinar o bloqueia de transações financeiras entre cidadãos brasileiros. No caso em específico, o juíz bloqueou uma chave Pix que estaria sendo usada para receber doações para organizar as manifestações do dia 7 de setembro, nas quais os manifestantes pregam a invasão do Senado e do próprio STF. Você pode ser a favor ou contra esses atos, você pode até não se importar com isso, esse não é o ponto levantado aqui. O ponto levantado é que, graças a digitalização do dinheiro fiat, ele se tornou ainda mais censurável. Atualmente, é possível que alguns poucos no poder consigam excluir outros da utilização da rede monetária do dinheiro fiat. Por algo que talvez aconteça no futuro, mas que ainda não aconteceu, o que é ainda pior.

Em síntese, o dinheiro fiat nunca funcionará, porque suas premissas estão erradas. Na prática, colocar os governos e os bancos centrais para administrar o dinheiro é equivalente a colocar os lobos para administrar o galinheiro. Isso porque eles são os principais beneficiários do dinheiro fiat, podendo imprimi-lo a vontade baseado em crédito com o futuro. Na prática, esse sistema permite que os governos roubem as próximas gerações acumulando dívidas impagáveis que se acumulam para os que vierem depois.

2.6.3. O oráculo dos anciões senis

Provavelmente você já ouviu falar do Oráculo de Delfos, que era conhecido como o “umbigo do mundo” na antiguidade. Não só gregos, como romanos e até egipcios iam até ele se consultar nele. Há +- 2500 anos, este oráculo era uma das mais poderosas e influentes instituições do mundo grego. Se consultavam no Oráculo de Delfos tanto grandes personagens da história, como Alexandre, o Grande, e embaixadores das cidades-estado gregas buscando por conselhos como também de cidadãos comuns. As consultas podiam ser relacionadas a problemas pessoais como para grandes e complexas questões políticas e de relações exteriores.

O ritual envolvia o sacrifício de animais e uma Suprema Sacerdotisa (conhecida como Pítia) em estado de transe que estaria em contato direto com os deuses e faria a ligação entre eles e a humanidade. Essa transe era induzida em uma câmara que somente as sacerdotisas tinham acesso, onde supostamente estaria o corpo de uma cobra píton mitológica. A Pítia exercia uma enorme influência, com poderes para instigar políticas governamentais, determinar o local de construção de cidades e até mesmo iniciar ou por fim a guerras.

Representação de um ritual no Oráculo de Delfos

O ritual envolvia inicialmente uma fonte em que o visitante tinha que se purificar e depois um sacrifício de cordeiro ou ave aos deuses, onde suas entralhas eram analisadas pelas sacerdotisas a procura de sinais divinos. As respostas dadas pelos oráculos eram misteriosas e enigmáticas, sendo de difícil interpretação. E quando elas não se confirmavam, a justificativa é que elas haviam sido interpretadas incorretamente por quem estava consultando o oráculo.

Nos dias de hoje, a descrição deste ritual soa absurda e geralmente faz as pessoas se questionarem “como essas pessoas acreditavam nessas coisas? Como elas não pensavam que as sacerdotisas só não estavam em transe devido ao consumo de algum fungo alucinógeno, vinho ou fumo?”. Isso é um anacronismo, pois as pessoas são e sempre serão filhas do seu tempo e a sua cultura sempre parecerá a melhor e mais lógica em comparação a culturas e costumes de outras épocas e lugares.

De mesma forma, nos dias atuais toda a estrutura financeira mundial é estruturada por uma espécie de oráculo composto por um grupo senil e desconectado da realidade, que acredita ser capaz de reger a economia mundial tal qual um maestro rege uma orquestra. Uma arrogância e prepotência que claramente desconsidera todas as complexidades de um sistema complexo e os efeitos inesperados de 2ª ordem associados com políticas intervencionistas.

Os interesses dos banqueiros centrais, este grupo senil a que eu me refiro, não está alinhado com o interesse da população em geral, visto que eles possuem acesso a dinheiro de graça, impresso direto do ar, enquanto a população em geral precisa trabalhar e produzir para ter acesso ao capital.

Dois exemplos claros (dentre os vários possíveis) de como o alinhamento de interesse deles não é com o bem público são:
I) o fato da presidente do Banco Central Europeu e ex-diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, ser uma criminosa condena e
II) a atual secretária do Tesouro Americano e ex-presidente do FED, Janet Yellen, ser contra a auditoria do FED e ter recebido mais de $7 milhões para “discursar” para as firmas de Wall Street somente entre os anos de 2019 e 2020, enquanto seu salário como secretária do Tesouro foi de $221 mil dólares em 2020. Quem realmente paga as contas da Janet Yellen, se a grande maioria dos seus rendimentos vem das empresas de Wall Street?

Christine Lagarde, uma criminosa condenada e hoje presidente do Banco Central Europeu, no julgamento que considerou ela culpada de negligência criminosa.
Janet Yellen depondo em audiência no congresso americano e se dizendo “fortemente contra auditorar o FED”, que supostamente seria o “Federal Reserve”, mas que não é nem federal e nem possui reservas, só imprimi dinheiro do ar.

Note que aqui a crítica não é específica a Lagarde ou a Yellen, mas sim ao conceito que um grupo de poucos “reis filósofos” possui a sabedoria para manipular a economia e determinar as coisas de uma maneira geral. E, mesmo que esse grupo de “reis filósofos” possuísse a sabedoria, os seus interesses ainda não estariam alinhados com os da população.

Acreditar que, após algumas reuniões, um grupo de banqueiros senil possui a resposta mágica para a taxa de juros e, com isso, a baliza correta para toda a economia mundial é um pensamento tão mágico e incoerente quanto acreditar que sacerdotisas chapadas conseguem aconselhar generais após terem conversado com os deuses. Talvez ainda seja pior, pois pelo menos as sacerdotisas estavam chapadas e podiam inventar previsões que estavam em seu favor, enquanto os banqueiros nunca estarão a seu favor.

Por que eles nunca estarão? Simples, porque as pessoas que estão mais próximas da máquina de impressão de dinheiro são beneficiadas por essa impressão, fato conhecido como Efeito Cantillon, que será explicado a seguir.

Banqueiros e políticos, vendo pessoas comuns defendendo eles e a sua boa indole.

2.6.4. Efeito Cantillon

A emissão de nova moeda tem efeito localizado na inflação e quanto mais próximo o indivíduo/empresa estiver da emissão, menos efeito inflacionário será sentido por ele. Ou seja, o resultado desta distribuição assimétrica é uma inflação também assimétrica, que beneficia quem está mais próximo da emissão da nova moeda.

Na época de Richard Cantillon (1680 -1734), quando este processo foi descrito inicialmente, isso significava que quem estava mais próximo do rei colhia mais benefícios do que quem estava longe.

Em outras palavras: o dinheiro não é neutro e os amigos do rei sempre colhem vantagens de suas posições privilegiadas. O Efeito Cantillon poderia basicamente ser entendido como uma redistribuição de renda do pobre para o rico, uma espécie de Robin Hood às avessas.

Quem recebe o dinheiro primeiro utiliza ele, aumentando a demanda na economia e gerando inflação. Então enquanto o dinheiro ainda está começando a permear pela sociedade como um todo, a inflação já está ocorrendo. Ou seja, a população em geral não tem nenhum ganho de poder de compra com a emissão de nova moeda, apesar de ter recebido mais dinheiro. Somente quem teve acesso no início da circulação desse ouro que colhe os frutos reais, podendo utilizar mais dinheiro barato e sem a inflação associada.

Isso significa que quando os Bancos Centrais tornam o dinheiro mais acessível (como com subsídios a setores da economia ou expansão do crédito), não haverá aumento da demanda ao mesmo tempo. Na realidade, a história mostra que certas classes de ativos são favorecidas em detrimento de outras, o que faz com que os preços subam em certas áreas enquanto em outras o preço cai.

Na prática, existe uma parcela da população que se beneficia da sua proximidade da emissão de moeda. Esta parcela obtém crédito mais barato, consegue renegociar dívidas milionárias com os governos, tem atuação política em lobbies e na busca por subsídios para suas empresas. Em suma, são parasitas. Eles são conhecidos como “Cantilionários”, termo que faz alusão a esse dinheiro conquistado a base de vantagens e favores que não ocorreriam em um livre mercado real com meritocracia real (que ainda não existiu na história, visto que livre mercado = ausência de coerção).

Richard Cantillon descreveu este processo no século 18, quando a economia inteira ainda era lastreada no ouro. Isso significa que o Efeito Cantillon, apesar de já exacerbado, ainda era lastreado no mundo real. Mas o dinheiro mudou em 1971, quando o presidente americano Richard Nixon fez com que o dólar deixasse de ser lastreado em ouro.

Após Bretton Woods o lastro do dinheiro se tornou subjetivo, baseado na força da economia interna dos EUA. Consumo, aumento de PIB e produção (poder bélico) basicamente. Seria algo como: “eu posso ir ao banco tomar mais dívidas pois hoje meu cargo é melhor, meu salario é melhor e eles ainda irão aumentar conforme eu for promovido”. Ou seja, o lastro do dinheiro atual está no crédito dos títulos do tesouro americano e na sua credibilidade para pagar essa dívida associada ao crédito. O lastro está na produtividade futura, que pode ou não existir

2.6.5. O que aconteceu em 1971?

O ano de 1971 não é um ano que nós escutamos falar nas nossas aulas de história. Geralmente nós sabemos bem o ano que começaram e terminaram as duas grandes guerras (1914–1918 e 1939–1945) ou do Golpes de Getúlio Vargas e Militar (em 1930 e em 1964), o ano da queda do Muro de Berlin (em 1991), a crise de 29 ou mesmo da morte do Senna e os anos do tetra e do penta (1994 para os dois primeiros e 2002 para o penta) ou algum outro fato marcante. Mas, apesar de ser um ano significativo para a estruturação do mundo de hoje em dia, o ano de 1971 passa batido para a maioria das pessoas. Fora os bitcoiners que já entraram mais fundo na toca do coelho, poucas pessoas sabem como os eventos de 1971 impactaram o mundo.

Foi no ano de 1971 que o presidente dos EUA, Richard Nixon, rompeu a conversibilidade do dólar por ouro. Foi o final definitivo do padrão ouro e quando o dinheiro deixou de ter lastro e passou a ser fiat. Ou seja, ao invés de um lastro real, a partir dos anos 70 o dinheiro passou ser lastreado puramente na confiança no sistema político, ou seja, na confiança na economia e no arsenal bélico dos EUA.

Imagem de diferentes notas de dólares, uma de quando o dólar ainda era lastreado no ouro, as outras duas já são fiat.

Existe uma vasta bibliografia que fala só desse tema, e este não é o enfoque deste texto, então vamos só focar em como essa ruptura afetou a Bateria Dinheiro. Dizem que uma imagem vale mais do que mil palavras e, apesar do risco de confundir casualidade com correlação, um gráfico vale mais ainda. Então para demonstrar em gráficos o significado do ano de 1971 na vida de todos nós, eu separei alguns gráficos do site wtfhappenedin1971.com com uma breve explicação deles:

1) a quantidade de colapsos de moedas nacionais (quando as moedas sofrem depreciação superior a 15% ao ano) sofreu um aumento sem precedente no último século;

2) a partir da década de 70 os mais ricos (1%) passam a ficar cada vez mais ricos em relação aos outros, com taxas de concentração de riqueza iguais ao final da década de 1920 (e quem conhece história sabe o que isso significa). Não é coincidência que o Top1%, que são muitos dos cantilionários do mundo, tenham tido um aumento de renda conforme a emissão do dinheiro se acentuou;

3) O gráfico com o histórico da inflação dos EUA desde a sua independência em 1775 mostra que a inflação apresentou um aumento significativo após 1971, mesmo a revolução, a guerra civil ou mesmo as duas guerras mundiais não elevaram a inflação em nada, quando comparado com a realidade pós anos 70.

4) e o resultado do aumento significativo da inflação a partir dos anos 1970s refletido no acervo do Google de livros, mostrando que ele foi sentido, comentado e descrito.

5) Essa mudança no dinheiro influenciou também o comportamento entre a relação produtividade X remuneração. Até antes da década de 1970 ambas andavam juntas, depois a produtividade seguiu em ritmo acelerado e a remuneração estagnou;

6) O aumento da remuneração também não foi minimamente capaz de fazer frente à inflação de ativos. O que significa, na prática, que hoje em dia é muito mais difícil comprar um imóvel do que nos anos 1970 e 1980.

Não é por acaso que a concentração de renda aumentou significativamente depois que o dinheiro parou de ter lastro ancorado na realidade e passou a ser impresso a vontade, lastreado pelo arranjo do petrodólar que já foi discutido em seções anteriores. Os gráficos apresentados acima só ajudam a ilustrar como o Efeito Cantillon é potencializado significativamente em um mundo sem lastro, o que significa na prática que os incentivos para as Elites não são para consertar o dinheiro. Muito pelo contrário, o dinheiro estar “quebrado” não é um acidente, e sim o projeto dos nossos oráculos, entidades ultrapassadas de um sistema falido e parasitário. Basicamente, esta tecnologia atual de Bateria Dinheiro possui muitas falhas técnicas e precisa ser atualizada.

Todos esses problemas do dinheiro fiat dão origem a frase dos bitcoiners “fix the money, fix the world” (conserte o dinheiro, conserte o mundo), ou também “bitcoin fixes this” (o bitcoin conserta isso). Como o Bitcoin conserta isso? É isso que a próxima seção vai discutir, mas primeiro vamos entender porque o ouro não cumpriu as funções de uma boa bateria monetária.

2.6.6. A Bateria Ouro

Primeiro, vamos explicar porque o ouro foi utilizado por tanto tempo como a base do dinheiro. No início, o valor do ouro estava na sua beleza, o que fez com que ele se tornasse um objeto colecionável para algumas pessoas, depois para várias pessoas, até que este objeto colecionável passou a ser utilizado como reserva de valor (uma vez que todos valorizavam ele) e moeda de troca (o comércio podia usar ele para as trocas e não precisava mais usar o sal ou o gado).

O ouro possui 2 características químicas que foram vitais para que ele se tornasse um metal universalmente valorizado:
I) ele não enferruja, ou seja, ele não sofre degradação do meio ambiente via intemperismo químico. Isso significa que é viável utiliza-lo como reserva de valor e que, mesmo depois de décadas ou mesmo séculos, a quantidade de ouro que você armazenou permanecerá constante. Ou seja, o ouro NÃO é um cubo de gelo derretendo e não perde matéria com o passar do tempo.

II) ele é escasso, e portanto a produção anual não dilui significativamente o estoque de ouro já minerado. Ou seja, como o ouro é resistente ao intemperismo químico, ele se preserva para a eternidade. Isso significa que todo o ouro que já foi minerado pela humanidade ainda está em preservado no estoque de ouro total, seja em circulação no mercado financeiro, seja em joias que passam de geração em geração pelas famílias. Isso faz com que a produção anual, que é baixa, visto que ele é um elemento escasso na natureza, não consiga diluir significativamente o estoque.

Avaliados em milhões de dólares, os ovos Fabergé foram feitos entre 1885 e 1916 por encomenda da Corte Imperial Russa.

Ou seja, o ouro é uma reserva de valor significativamente melhor que o dinheiro fiat, visto que ele não pode ser diluído conforme a vontade de algum oráculo senil.

Mas o ouro tem falhas incontornáveis, que fazem com que ele deixe de ser uma boa bateria monetária. Abaixo, temos a mesma tabela extraída do “the bullish case for Bitcoin” usada acima para o dinheiro fiat, mas agora sendo utilizada para analisar o ouro:

Eu coloquei asteriscos na nota B da verificabilidade e na nota C na resistência a censura do ouro porque acredito que estas notas deveriam ser menores do que as atribuídas no texto “the bullish case”. A verificabilidade do ouro deveria ser, no máximo, nota C e a resistência a censura do ouro é claramente nota D, tendendo ao F. Aqui, vamos discutir essas duas notas e também a nota D da portabilidade do ouro, que também tende ao F.

Verificabilidade

Você saberia dizer se uma barra de ouro é pura ou se ela foi “batizada” com algum outro metal? Uma pesquisa rápida no google mostra que existem diversas “técnicas” mais ou menos eficazes, que permitem verificar falsificações grosseiras, como aproximar o ouro (não magnético) de um imã e ver se ele é atraído, passar ele na sua pele e ver se ele deixa marcas (se ele deixar, ele não é puro, visto que ouro não oxida) ou ver se ele reage com vinagre (o ouro não reage, outros metais possivelmente presentes sim).

Mas a realidade é que quase ninguém consegue verificar com precisão sem equipamento técnico específico e a falsificação de ouro ainda é um golpe comum nos dias de hoje (1, 2). Verificar o ouro com confiança significa atestar a pureza do material, o que pode ser feito via espectrômetros de massa portáteis, que custam algo entre 20–30 mil dólares, ou seja, um processo inviável para o cidadão médio que só queria usar um dinheiro confiável.

Portabilidade & Resistência à censura

Como a escassez do ouro é grande, ele é valioso. Isso significa também que pequenas quantidades de ouro já valem uma quantidade significativa de capital. O fato do ouro ser escasso e valioso faz com que ele tenha sido a forma de dinheiro mais utilizada por muitos séculos e também o lastro dos dinheiros de papel moeda até os anos 70s.

O principal problema do ouro vem da sua baixa portabilidade, visto que o transporte ou mesmo o armazenamento de qualquer quantidade considerável de ouro é perigoso e demanda o serviço de empresa de segurança especializada. Isso acontece, entre outros motivos, porque ele é precioso e pouco volume dele já possui um grande valor.

Nas palavras do Michael Saylor “o ouro convida a violência”, pois pelo fato dele ser físico, ele permite que uma pessoa com más intenções se aproprie da energia monetária de outra pessoa via coerção. E de fato, a história da civilização é também a história dos saques de ouro realizados pelas civilizações vencedoras em guerras contra outras civilizações.

Na verdade, o transporte de qualquer tipo de dinheiro físico já convida a violência, como pode ser observado nos recorrentes casos de ataque a carros fortes. O ouro é só uma forma física mais densa de dinheiro físico, ou seja, uma forma de bem monetário mais valioso por volume, o que convida ainda mais à violência.

Carro forte alvo de ataque e explosão em tentativa de roubo na Bahia.

Guardar o ouro em um cofre em um banco acarreta muitos custos e não é seguro. Não é seguro porque não é necessário somente uma guerra entre países para que o ouro seja confiscado, os governos também podem confiscar o seu ouro via decreto, como ocorreu nos Estados Unidos em 1933. Os governos podem censurar inclusive outros governos e os impedir de usar as suas próprias reservas de ouro, como é o caso da disputa atual entre Venezuela e Inglaterra. Ideologias de lado, o fato é que um país está censurando o outro de utilizar suas próprias reservas de ouro.

Trecho inicial da ordem executiva 6102, que confiscou o ouro dos americanos em 1933.
Milhões ou bilhões de dólares ocupam um grande espaço físico em cofres de bancos, o que torna o seu transporte quase impraticável. Na imagem, a rainha da Inglaterra vistoria as reservas de ouro armazenadas no Banco da Inglaterra.

O exemplo das reservas de ouro do Banco Central da Hungria

O Banco Central da Hungria surpreendeu o mercado do ouro no início de abril de 2021, quando anunciou ter comprado 63 toneladas de ouro em mês anterior. Nos últimos três anos a Hungria aumentou as suas reservas de ouro em 91,4 toneladas, passando de 3,1 toneladas para 94,5 toneladas.

Essas compras do Banco Central da Hungria são justificadas por eles como “controle de novos riscos causados pela pandemia do coronavirus” e “a importância do ouro na estratégia nacional por ele ser um ativo ‘porto seguro’ e uma reserva de valor”. Em 2018, a Hungria importou suas barras de ouro por avião de Londres com escolta fortemente armada para serem armazenadas internamente, e tudo indica que eles repetiram a mesma operação em 2021.

Soldados húngaros guardando o ouro do banco central repatriado de Londres em 2018 (Fonte).

Por que as reservas da Hungria são as usadas como exemplo? Porque o transporte do ouro geralmente é feito de maneira sigilosa, para mitigar os riscos, então não existem tantos exemplos para serem utilizados. O próprio Banco Central do Brasil comprou uma quantidade significativa de ouro este ano, mas as informações sobre origem, destino ou transporte foram mantidas em sigilo.

Ou seja, armazenar a sua energia monetária na Bateria Ouro acarreta perdas anuais relacionadas ao custo de segurança dos cofres de bancos ou pessoais, além de envolver custos de transporte significativos. E em uma escala de tempo maior, guerras também podem ocorrer entre as nações e o ouro ser um dos “prêmios” do vencedor.

Na prática, a necessidade da Bateria Ouro ser armazenada em segurança em cofres, faz ela perder uma das características primordiais de uma bateria, que é ser portátil. O que significa que a energia monetária armazenada na forma de trabalho pode ser confiscada por qualquer governo. E, embora o dólar americano e outras moedas fiduciárias melhorem a capacidade de venda do ouro no espaço, ele ainda apresenta um desempenho ruim como meio de transporte de energia monetária ao longo do tempo, visto que se existe uma certeza na história é que o ouro será alvo de ataques e tentativas de confisco de agressores externos.

Sintetizando: A Bateria Dinheiro é, possivelmente, a principal bateria da humanidade. Isso porque o dinheiro é uma das camadas básicas da sociedade, a partir da qual nós conseguimos comunicar valor entre nós em uma escala superior a um pequeno núcleo familiar ou uma tribo. A Bateria Dinheiro ideal possui como características técnicas a ser avaliadas: durabilidade, portabilidade, fungibilidade, ser verificável, escassez, divisibilidade, resistente a censura e com histórico estabelecido.

Atualmente a Bateria Dinheiro está quebrada. Ela apresenta problemas claros em relação a sua escassez e a sua resistência à censura, duas características fundamentais para que esta bateria funcione de maneira correta. O lema do FED e dos demais bancos centrais tem sido imprimir o dinheiro para solucionar os problemas de liquidez da economia, pelo menos desde a crise de 2007–2008. Independente de concordar ou discordar destas políticas de emissão de moeda, o fato é que se mais moedas foram emitidas, por definição as moedas se tornaram menos escassas. Além de não ser escasso, o dinheiro fiat atual é utilizado como arma de coerção geopolítica pela potência dominante, os Estados Unidos, para efetivamente censurar transações monetárias dos seus inimigos.

Apesar de todos estes problemas com o dinheiro fiat, voltar para o padrão ouro, ou seja, voltar a ter a Bateria Ouro como padrão primário de armazenamento de energia monetária não faz sentido. Foram as limitações do ouro que permitiram que os governos conseguissem romper o seu lastro e tornar o dinheiro totalmente fiat.

2.7. Ou seja…

Nesta segunda seção, o enfoque foi explicar melhor como funcionam as baterias (no sentido estrito e no sentido amplo) e como elas foram e continuam sendo extremamente importantes para a estruturação do mundo de hoje. Ou seja, não adianta nada a humanidade capturar mais energia se ela não for ser armazenada com eficiência.

Utilizando o conceito de bateria como um “reservatório portátil de energia”, nós vimos como até uma fruta pode ser considerada uma bateria, pois ela armazena a energia solar na forma de frutose (mas uma bateria ruim, pois ela não preservara essa energia armazenada no tempo). E como a Bateria Gasolina (e querosene e óleo combustível) ajudou a moldar o mundo no último século.

Basicamente, a bateria gasolina possui uma densidade energética significativamente superior a outras baterias (como a elétrica, mesmo a mais moderna), o que explica a sua importância. Graças a esta forma de armazenamento e utilização de energia capturada chamada gasolina, a humanidade hoje consegue voar, fazer comércio marítimo em uma escala inimaginável no passado e com velocidade superior a do vento e se locomover em terra a uma velocidade superior a de um cavalo.

O alumínio também é utilizado como bateria pela Islândia para exportar a energia, que é abundante no país, na forma de commodity. A Bateria Alumínio viabiliza um ganho substancial de energia capturada pelos islandeses. Essa energia é vendida na forma de alumínio e o pagamento entra na economia da Islândia. Ou seja, de fato a possibilidade de capturar mais energia levou a um aumento de riqueza e prosperidade do país.

A Bateria Dinheiro pode ser vista como uma das principais baterias do mundo, visto que é ela que faz a intermediação entre I) todas as relações de cooperação no mundo e II) todas as nossas negociações com nossos eu-do-futuro. Porém, atualmente esta bateria está baseada numa tecnologia de bateria ruim conhecida como dinheiro fiat, que resulta em muita perda de carga, fazendo efetivamente que a Bateria Dinheiro não se comporte como um bom reservatório de energia monetária ao longo do tempo. Ou, como diria o Michael Saylor, o dinheiro é um cubo de gelo derretendo, pois ele só apresenta perdas e não se preserva. Nesta metáfora, a inflação anual é a taxa de derretimento do bloco de gelo dinheiro.

Para fechar esta seção, vamos citar a célebre frase de Frederich Hayek em uma entrevista de 1984:

“não acredite que algum dia teremos um bom dinheiro novamente antes de tirar ele das mãos do governo, não podemos tirá-lo violentamente das mãos do governo, tudo o que podemos fazer é introduzir por algum meio indireto astuto algo que eles não podem parar “

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Written by Explica Bitcoin

Alguém cansado de ler tanta bobagem a respeito de um tema importante. Este espaço será utilizado para traduções e para textos autorais

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