A Reforma Bitcoiner
Esta é uma tradução do texto “The Bitcoin Reformation”, escrito por Tuur Demeester publicado pela Adamant Research.
Um adendo interessante é que foi nesta época que a suposta bolha das tulipas teria ocorrido, como discutido neste texto. Ou seja, a hipótese de fake news religiosa ganha mais corpo se nós pensarmos no contexto histórico com disputa de narrativa entre pessoas com religiões distintas.
Tradução por Leta.
Com a palavra o autor:
INTRODUÇÃO
No final do século 16, um grupo desorganizado de intelectuais e empresários rebeldes fundou um país em uma das terras menos desejáveis da Europa — que era inundado com tanta frequência que precisava de centenas de quilômetros de fossos — enquanto lutava por oitenta anos uma longa guerra contra o maior império do mundo.
Desta luta e caldeirão de ideias, emergiram os anos dourados tanto dos holandeses como dos britânicos, que formaram instituições econômicas inovadoras que mudaram o mundo. Um dos experimentos socioeconômicos mais bem-sucedidos ocorreu na América: a cidade de Nova York.
Este relatório argumenta que o surgimento do bitcoin no século 21, criptografia, a internet e a geração do milênio são mais do que apenas tendências; eles anunciam uma onda de mudança que exibe uma dinâmica semelhante à das revoluções que ocorreram na Europa no século 16–17.
Algumas das conclusões que nosso relatório sugere:
- Tolerância ao Bitcoin versus intolerância ira se tornar uma grande divisão política
- Os principais incentivos do Bitcoin serão economizar, emprestar e subscrever
- Custódia colaborativa irá se tornar um padrão da indústria
- Os bancos offshores podem se transformar em bancos de bitcoin
- Bitcoin com vencimento rápido: títulos, anuidades, empréstimos, seguros
- As ofertas iniciais em exchanges (Initial Exchange Offerings, IEOs) devem permanecer e até aumentar
- Os poupadores de Bitcoin podem acelerar uma revolução na história do pensamento
Parte 1 — O PASSADO COMO CHAVE DO PRESENTE — UMA NOTA SOBRE O MÉTODO
“Quem deseja antever o futuro deve consultar o passado; pois os eventos humanos sempre se assemelham aos dos tempos anteriores. Isso decorre do fato de que eles são produzidos por homens que sempre foram, e sempre serão, movidos pelas mesmas paixões e, portanto, eles necessariamente têm o mesmo resultado.”
NICCOLÒ MACHIAVELLI, 1517
Como investidor e analista, tenho como objetivo identificar tendências socioeconômicas e prever como elas irão evoluir. Eu leio, faço curadoria e compartilho. Eu separo o sinal do ruído ouvindo especialistas que acho que têm integridade. E, no entanto, um grande desafio permanece no fato de que as tendências seculares muitas vezes são claramente identificáveis apenas em retrospectiva.
A solução, acredito, é identificar perspectivas históricas paralelas. Com o objetivo de reduzir minhas chances de permanecer cego às tendências no tempo, estudo história em um sentido amplo. Enquanto leio livros de história e artigos, procuro encontrar paralelos e simetrias com as tendências atuais. Ao fazer isso, eu forço minha mente para considerar dinâmicas que eu não tinha percebido antes, e sou capaz de formular hipóteses sobre causalidades que antes eram inconcebíveis para mim. Acredito que isso melhora minha capacidade de atribuir probabilidades a certos resultados, o que, por sua vez, me permite traçar estratégias de meus investimentos e empreendimentos empresariais de uma forma mais racional.
No passado, eu tracei paralelos entre o Bitcoin e o início da indústria do petróleo, as guerras dos buscadores na internet, os mercados de nomes de domínio, o crescimento do compartilhamento de arquivos P2P e os protocolos de internet. Mas eu continuava sentindo que não estava conseguindo compreender fundamentalmente a magnitude da época em que o bitcoin funcionará como um catalisador e gerará. Foi só depois de estudar a era em torno da Reforma Protestante que senti que havia encontrado um projeto potencial de escopo suficiente.
Espero que você goste de ler este relatório tanto quanto eu gostei de pesquisá-lo.
Sinceramente,
Tuur Demeester
Parte 2 — QUATRO PRECONDIÇÕES DE UMA REFORMA
“As taxas temporárias tornaram-se permanentes e muitos novos impostos foram impostos aos membros mais ricos da igreja. Documentos da Igreja […] revelam que filhos e netos de hereges tiveram que pagar pelos pecados de seus pais […] as almas de parentes falecidos podiam ser libertadas do purgatório por taxas ”.
O MERCADO DO CRISTIANISMO, P. 117
1 / RENTISMO DE PRESTADORES DE SERVIÇOS MONOPOLISTAS
No artigo de 2002 “Uma Análise Econômica da Reforma Protestante”, argumenta-se que a Igreja Católica era uma fornecedora monopolista de serviços espirituais e que o controle que as autoridades religiosas tinham sobre partes do sistema legal lhes fornecia o poder de mercado para excluir rivais.
Durante séculos, a Igreja Católica exerceu uma função de porteiro altamente considerada: controlava as chaves do céu por meio do perdão dos pecados, normalmente fornecido pelos padres. Os autores do artigo argumentam que “se o monopólio religioso cobrar caro demais, há o risco de duas formas de entrada: (a) os cidadãos comuns podem escolher outros distribuidores de serviços religiosos e (b) as autoridades civis podem procurar um provedor diferente de serviços jurídicos . ” E foi exatamente isso que aconteceu durante a Reforma.
Atualmente, o prestador de serviços monopolista cujo rentismo está sendo questionado é o Sistema Monetário e Financeiro Internacional (International Monetary and Financial System, ou só IMFS). Desde o acordo de Bretton Woods de 1944, o dólar americano tem desfrutado do “privilégio exorbitante” de ser a moeda de reserva mundial. Semelhante à Igreja Católica no século 16, o controle das autoridades financeiras sobre partes do sistema legal fornece a elas o poder de mercado para excluir rivais. Além disso, o sistema bancário baseado no dinheiro fiat tem uma função de guardião, onde controla as chaves para a riqueza e as pensões dos cidadãos do mundo. No ambiente atual de flexibilização quantitativa (nota da tradução: nome bonito para imprimir dinheiro a vontade), taxas de juros negativas e guerras cambiais, o monopólio bancário está indiscutivelmente cobrando demais por seus serviços (os clientes estão pagando o imposto da inflação), o que significa que corre o risco de duas formas de competição: (a) os cidadãos comuns podem escolher outros distribuidores de serviços financeiros e (b) as autoridades civis podem buscar um provedor diferente de serviços financeiros — em outras palavras, com mais adoção, podemos ver entidades políticas adotando o Bitcoin como um dinheiro completo para todos os fins legais.
2 / REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA: CATALISADOR DE MUDANÇA
No século 16, várias invenções que mudaram o mundo ganharam uma adoção significativa: a imprensa reduziu o custo de um livro de um ano de trabalho para o preço de uma galinha, avanços nos registros de contabilidade aceleraram o comércio internacional, melhorias na bússola e na ampulheta permitiram retornar do não mapeado território (que desbloqueou a exploração do mundo), e o boom da pesquisa científica levou ao avanço de ainda mais invenções.
No final do século 20 e no início do século 21, várias invenções trouxeram uma revolução digital: telecomunicações e e-mail permitem trabalhar remotamente, a comoditização da computação e armazenamento de dados reduz enormemente a sobrecarga de infraestrutura, o que permite que os custos de inicialização diminuam, o software de código aberto fornece empreendedores com ferramentas de construção robustas e gratuitas, a criptografia abre um conjunto de tecnologias defensivas para soluções de segurança sem permissão e as mídias sociais permitem a disseminação rápida e não burocrática de informações.
3 / NOVA CLASSE ECONÔMICA: PESSOAS COM ALGO PELO QUE LUTAR
Durante os séculos 16 e 17, o comércio marítimo em toda a Europa melhorou e cresceu significativamente. Correndo desde a Suíça até o Canal da Mancha, o rio Reno era uma importante artéria para o comércio, e as cidades dos Países Baixos (a Holanda) eram beneficiárias naturais por estarem localizadas na boca disso. A navegação intercontinental também decolou, principalmente com o comércio de especiarias entre a Ásia e a Europa. O aumento do volume do comércio ampliou o impacto da inovação tecnológica, e cidades portuárias com estado de direito forte viram um aumento em indústrias especializadas como pintura, tecidos, impressão de livros, armamento, tapeçaria, escolaridade e medicina. Os especialistas no topo dessas indústrias poderiam atrair negócios de toda a Europa. Como resultado do aumento do comércio, da inovação tecnológica e da intensa especialização, a riqueza geral aumentou e a contribuição relativa da agricultura para a economia diminuiu, o que enfraqueceu a riqueza dos proprietários de terras e igrejas em favor da nova classe mercantil.
Hoje, os sistemas de classes no Ocidente são menos definidos. No entanto, acreditamos que certas partes da população são muito mais orientadas para a mudança do que outras. A geração millenial (nota do tradutor: deve ser verdade para os zoomers também, mas os zoomers ainda são menos estudados e comentador por estarem começando a entrar na vida adulta agora), em particular, tem um ceticismo distinto em relação às finanças tradicionais e abraça com entusiasmo a inovação digital. Uma pesquisa de 2016 do Facebook descobriu que apenas 8% dos millennials “confiam em instituições financeiras para orientação” e que 45% estão “prontos para mudar se uma opção melhor aparecer”. Além disso, uma pesquisa do Transamerica Center for Retirement Services sugere que 76% dos millennials acreditam que “em comparação com a geração dos meus pais, nossa geração terá muito mais dificuldade para alcançar a aposentadoria” e 79% também estão “preocupados que quando eu estiver pronto para me aposentar, a previdência social não estará lá para mim”. Além de ser a geração que mais investe na economia do Bitcoin, espera-se que os millennials, como um grupo, controle a maior parcela da renda disponível até 2029.
“O corte para a geração Millennial [ano de nascimento] é 1996, porque aponta para uma geração que é velha o suficiente para ter experimentado e compreendido o 11 de setembro, enquanto também tiveram que encontrar seu caminho durante a recessão de 2008 como jovens adultos.”
PEW RESEARCH, 2018
4/ ESTRATÉGIAS CONFIÁVEIS PARA DEFESA E FUGA
Se conquistar as outras cidades leva tanto tempo quanto as que já subjugamos, não há tempo ou dinheiro no mundo para dominar as 24 cidades que estão se rebelando na Holanda. ”
COMANDANTE ESPANHOL, DON LUIS DE REQUESENS, 1574
“A criptologia representa o futuro da privacidade e, por implicação, o futuro do dinheiro, e o futuro dos bancos e das finanças. […] Dada a escolha entre se cruzar com um sistema monetário que deixa um rastro eletrônico detalhado de todas as atividades financeiras de uma pessoa, e um sistema paralelo que garante o anonimato e a privacidade, as pessoas irão optar por este último. Além disso, eles vão exigir o último.”
ORLIN GRABBE, 1995
Mesmo com uma economia superior do seu lado, e com uma riqueza significativa, um cidadão ficará muito menos tentado a se opor a um status quo dominante se ele também não tiver estratégias confiáveis para defesa e fuga.
Não foi por acaso que a revolta holandesa durou 80 anos — mais do que qualquer outro levante da história europeia moderna. Os “mendigos do mar” eram mestres indiscutíveis da água. Em 1573, os holandeses defenderam-se com sucesso contra o cerco de Alkmaar, inundando os campos circundantes. Eles também destruíram uma linha de abastecimento crítica da Espanha usando inundações. Um ano depois, a mesma tática salvou a cidade de Leiden, o núcleo holandês de educação, de outro ataque espanhol. O núcleo ocidental da república holandesa era protegido por uma “linha d’água”: uma série de aldeias fortificadas, próximas o suficiente para permitir a comunicação óptica, com terras que poderiam ser inundadas em questão de horas. E devido ao fácil acesso ao Mar do Norte e à grande frota, havia as opções alternativas de emigração para as Ilhas Britânicas ou, com o surgimento do século 17, aventurar-se no Novo Mundo.
No século 21, o conjunto tecnológico defensivo disponível para pessoas que questionam o status quo econômico é a criptografia — que pode permitir a privacidade e a proteção contra a apreensão de ativos. Hoje, a criptografia é amplamente usada. Por exemplo, a aplicação de HTTPS na web cresceu de 13% em 2014 para 77% em 2018. No entanto, a criptografia anula o propósito de privacidade se o provedor de serviço utilizar uma backdoor. Portanto, vemos um maior interesse na auto-soberania digital, com a geração millenial adotando bitcoin e mostrando interesse em projetos como VPN, Blockstack, redes de malha wi-fi, Tor, Signal, Purism, U2F, PGP e assim por diante.
DOUTRINAS NAQUELA ÉPOCA E AGORA
“Toda a ideia de ter uma moeda independente, ao invés de apenas pagamentos mais privados ou resistentes à censura por moedas, não existiam entre cypherpunks ou acadêmicos criptógrafos até futuristas libertários a introduzirem.”
NICK SZABO, 2019
Um paralelo intuitivo entre a Reforma Protestante e agora são as doutrinas que refletiam a própria essência da rebelião — que eram chamados por unidade e convicção, e vemos doutrinas unificadoras semelhantes hoje.
No século 16, a principal doutrina da Reforma Luterana foi resumida com as palavras Sola Fide, que se traduzem como “fé somente”. Esta frase resumia a ideia de que para ter acesso ao céu, os crentes não precisavam mais de um sacerdote. Sua fé e devoção por si só seriam suficientes. Outro chamado comum da Reforma era Sola Scriptura, ou “somente pela Escritura”, que significava a rejeição de qualquer autoridade original infalível que não a Bíblia.
No espaço do bitcoin hoje, existem vários “gritos de guerra” que tendem a ser considerados memes. Em nossa opinião, eles refletem uma essência rebelde que poderia anunciar uma reforma moderna. A primeira é Vires in Numeris, que significa “força em números”. O espírito desta crença foi resumido por Tyler Winklevoss em uma linha frequentemente citada: “Decidimos colocar nosso dinheiro e fé em uma estrutura matemática que está livre de política e erro humano.” Outro lema usado pelos bitcoiners é “Don’t Trust, Verify” (Não Confie, Verifique). Esta frase existe desde a década de 1990s e pode ter começado como uma reviravolta na “confiança, mas verifique” de Ronald Reagan. Ela incentiva os usuários a verificarem de forma independente a integridade do novo software de código aberto e, no caso do Bitcoin, para verificar o validade das transações no timechain (o blockchain do Bitcoin). Uma postagem no fórum de 2013 originou a palavra HODL, que agora se refere ao compromisso com o ato autossoberano de manter seu “estoque” de bitcoin, não importa a volatilidade. Por fim, há o mantra “Not Your Keys, Not Your Bitcoin” (“Se a chave não é sua, o bitcoin também não é”), que se refere à falta de confiança em custodiantes terceirizados.
Parte 3 — ECONOMIA FINANCEIRA DURANTE A REFORMA
“Não é de admirar que esses holandeses tenham prosperado antes de nós. Seus estadistas são todos mercadores. Eles viajaram para países estrangeiros, entendem o curso do comércio e fazem de tudo para promover seus interesses. ”
PETIÇÃO DO SÉCULO XVII APRESENTADO A OLIVER CROMWELL
Na Reforma, vimos o surgimento de uma nova classe cultural e econômica tentando se defender em um ambiente dinâmico, volátil e hostil. Era uma rede de atores econômicos idiossincráticos, altamente investidos em sua causa, isolados das formas tradicionais de fazer negócios, com defesas altamente potentes à sua disposição. Impulsionado por uma demanda feroz por maior segurança financeira, isso resultou em uma série de inovações e tendências seculares. Abaixo, discutimos várias características da economia financeira holandesa do século 16 e extrapolamos a partir delas algumas tendências paralelas prováveis que poderiam emergir de forma sustentável no espaço do Bitcoin.
BANCO DE DEPÓSITO: RESERVA COMPLETA, PROTOCOLOS RIGOROSOS
Em 1609, na Holanda, comerciantes e funcionários da cidade colaboraram para fundar o Amsterdam Wisselbank (AWB), que servia a dois propósitos principais. Primeiro, para proteger a riqueza em ouro e prata carregada por muitas centenas de refugiados mercadores do sul da Holanda e de outros territórios. Em segundo lugar, iria emitir dinheiro bancário denominado em florim internacionalmente confiável e contas de transações.
O nível de segurança do AWB na época era incomparável no mundo. Ele estava localizado em Amsterdã, uma cidade protegida pela linha de água holandesa, que formava um fosso com mais de 80 quilômetros de extensão. O cofre e as operações do banco estavam localizados no local mais central e visível da cidade: a prefeitura. E a estrutura organizacional do banco refletia um forte desejo de ser intransigente em seus deveres fiduciários. O AWB contava com quatro comissários e era proibido que o escritório físico funcionasse sozinho. Os comissários supervisionaram oito contadores, três receptores e um analisador de metais preciosos. Para evitar fraudes, cada um dos contadores era responsável apenas por uma tarefa designada. A Companhia Holandesa das Índias Orientais (Dutch East India Company, também chamada de VOC), indiscutivelmente a entidade econômica mais poderosa de sua época, era titular de uma conta AWB e só fazia pagamentos por meio do Wisselbank.
Apesar de um histórico um tanto manchado como um banco de reserva completo, a reputação do AWB era incomparável no século 17, e sua estabilidade e confiabilidade desempenharam um papel fundamental na prosperidade da República Holandesa. Ainda em 1820, Adam Smith, em A Riqueza das Nações, elogiou o dinheiro do Wisselbank por “sua superioridade intrínseca em relação à moeda”. O AWB não era barato: cobrava uma taxa de armazenamento anual de 1% para moedas de ouro, bem como taxas de abertura, taxas de transação e uma taxa de retirada de 1,5%. No geral, as vantagens do dinheiro do banco AWB eram tais que suas notas carregavam um ágio — elas eram negociadas com um prêmio em relação ao ouro real e às moedas físicas pelas quais eram garantidas
Na comunidade bitcoin, em resposta à aversão cultural de terceiros confiáveis, alto risco de roubo e perda e incerteza regulatória de longo prazo, esperamos uma maior adoção de soluções bancárias de depósito de bitcoin altamente seguras e com minimização de confiança.
As soluções com o mínimo de confiança são aquelas em que o roubo ou a fraude são, por definição, extremamente difíceis. Com o uso de mecanismos de atraso e aninhamento programável de autoridade de assinatura, estamos vendo o início de um pacote de custódia atraente e robusto para bitcoin, que pode gerar um nível de segurança até então incomparável. Acreditamos que há muita promessa nas soluções de contratos inteligentes recentemente exploradas por pessoas como Bob McElrath, Bryan Bishop e Pieter Wuille. Nesse sentido, a crescente adoção de endereços multi-sig para armazenamento de bitcoin é provavelmente um início promissor de uma tendência muito maior. Em outubro de 2019, 32% de todos os bitcoins em circulação eram armazenados no formato de endereço P2SH mais amigável à privacidade e 12% eram armazenados visivelmente em endereços multi-sig (acima de 0% em 2014).
“[…] um esquema de configuração de transação que vincula o usuário e o invasor a sempre usar uma observação pública e um período de espera antes que uma tecla de atalho fracamente protegida tenha permissão para gastar moedas arbitrariamente. Durante o período de atraso, há uma oportunidade para iniciar a recuperação / recuperação que pode acionar parâmetros de armazenamento refrigerado mais profundos ou redefinir o período de atraso.”
BRYAN BISHOP DESCREVENDO MULTI-SIG, PROPOSTA DE VAULT PRÉ-ASSINADA, 2019
SEGURO EMPRESARIAL: REDE DE CONFIANÇA CAUTELOSA
Com o século 16 vendo uma explosão no comércio marítimo, isso também significou que a tecnologia financeira era necessária para lidar com o risco associado. As primeiras formas de seguro marítimo eram na forma de “empréstimos marítimos”, que exigiam uma alta taxa de juros, pois eram reembolsados apenas na chegada segura do barco ao destino. Este tipo de contrato era especialmente útil se o investidor não tivesse acesso a informações completas sobre a lucratividade do empreendimento do marinheiro. Uma alternativa era o contrato de “comenda”, que dava ao investidor o direito de participar dos lucros de uma viagem em caso de conclusão com sucesso. Ambos foram substitutos imperfeitos do seguro marítimo. Os primeiros contratos de seguro foram encontrados na Itália, onde os próprios comerciantes agiam como subscritores — o que mais tarde deu origem à forma mútua de seguro. No século XVI, o seguro se espalhou pela Grã-Bretanha, França, Holanda e Espanha. Um desafio recorrente para os comerciantes era a cobrança de sinistros; alguns centros financeiros provaram ser menos confiáveis do que outros e um comerciante que confiou em um segurador errado poderia nunca ver seu dinheiro. Dado o quão difícil era obter informações essenciais no mercado de transporte marítimo imaturo, o risco de agência para os subscritores era substancial. Às vezes, os mercadores faziam um seguro excessivo e afundavam deliberadamente seu navio, ou compravam o seguro de um navio que sabiam que já estava perdido. Por causa dos altos riscos envolvidos, os comerciantes pagavam um prêmio por subscritores de qualidade, e os subscritores muitas vezes se limitavam a trabalhar com comerciantes em quem podiam confiar. Outros fatores que determinaram as taxas de seguro foram a estabilidade financeira dos subscritores e a cultura do estado de direito da cidade. O licenciamento e a guilda de corretores de seguros foram repetidamente testados pelas autoridades em Amsterdã e Veneza, mas permaneceram impopulares.
O seguro na indústria do Bitcoin ainda está em um estágio muito inicial. Desde o advento da indústria de mineração de bitcoin em 2013, vimos muitos exemplos de contratos de proto-seguro: os investidores pré-encomendam plataformas de mineração de startups de mineração, que usam os lucros para produzir os chips e fabricar as máquinas e, semelhante ao século 16 no comércio marítimo, após a conclusão bem-sucedida da missão, é então capaz de compartilhar os lucros do empreendimento.
Além disso, vários custodiantes de bitcoins têm algum tipo de seguro, mas as letras miúdas geralmente mostram que apenas as carteiras quentes são seguradas — o que geralmente representa menos de 10% do bitcoin sob gestão. Semelhante ao comércio do século 16, há uma infinidade de incógnitas quando se trata de risco de subscrição no espaço: risco de volatilidade de preços, risco regulatório, risco de informação, risco de provedor de serviço e assim por diante. Dado o quão globalmente o bitcoin é vendável, mesmo os ataques em nível de estado-nação não podem ser descartados. As seguradoras que forem bem-sucedidas neste espaço terão que ser extremamente conhecedoras tanto das operações quanto da tecnologia, e precisarão trabalhar dentro de uma estrutura que garanta responsabilidade e relacionamentos de longo prazo. Não é por acaso que o autosseguro na forma de um fundo de reserva se tornou um produto básico da indústria de custódia de bitcoins.
COLATERAL LÍQUIDO COMO BASE PARA EMPRÉSTIMOS E DERIVATIVOS
Em 1602, comerciantes da Holanda fundiram seis pequenas empresas e reuniram 64 toneladas de ouro para formar a Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC). A missão da VOC era possuir e operar uma frota de navios mercantes para comércio com a Ásia, para a qual recebeu privilégios de monopólio do governo holandês. O monopólio permitiu à frota desempenhar um papel militar e econômico na guerra em curso com a Espanha. Em 1604, a empresa fez uma oferta pública — o primeiro IPO moderno — permitindo que qualquer comprador possuísse suas ações. Foi um sucesso: em Amsterdã, mais de 2% da população se inscreveu. A ausência deliberada de ações ao portador e as regras claras de propriedade e transferência cumpriam os requisitos essenciais para um mercado transparente. Em 1610, os primeiros dividendos foram pagos aos investidores.
As ações da VOC provaram ser altamente líquidas e desejáveis como garantia: meses após a fundação da empresa, ações avaliadas em 27.600 florins foram usadas como garantia em um acordo de troca de prisioneiros. E em 1607 um nobre tomou emprestado 2.000 florins a 8% contra 3.000 florins em ações da VOC como garantia (índice LTV de 66%). O mercado de garantias para ações da VOC era muito ativo, mas por ser um mercado privado, muitos registros não sobreviveram.
Em 1623, o governo regulamentou especificamente o procedimento para liquidação de ações da VOC no caso de inadimplência de empréstimos por parte de seu proprietário, e na década de 1640 a bolsa de valores de Amsterdã tinha uma operação regular de recompra para ações da VOC. As taxas de juros no mercado de Amsterdã para empréstimos (garantidos) caíram de 8% em 1596 para menos de 6% em 1620. A grande liquidez do mercado de VOC também os tornou o ativo subjacente perfeito para um próspero mercado de derivativos na Amsterdã do século 17, com contratos futuros (incluindo operações a descoberto) e opções. Em sua dissertação com foco em VOC, o historiador L.O. Petram conclui que “após o período de 1630–50, os investidores estavam principalmente interessados nos serviços financeiros fornecidos pelo mercado secundário, e não no próprio comércio das Índias Orientais”.
Passando para o dia de hoje, vemos semelhanças entre os poupadores de bitcoin e os acionistas antigos da VOC: eles costumam estar comprometidos com o longo prazo, têm uma concentração relativamente alta de sua riqueza vinculada ao ativo, não gostam de vendê-lo pois isso gera impostos sobre ganhos de capital e, como a geração millennial, eles têm ambições de fazer mais investimentos. No futuro, esperamos que o uso de bitcoin como garantia para empréstimos se torne cada vez mais difundido. Também estamos otimistas com os mercados de derivativos de bitcoin, uma vez que este permite que as empresas ajustem com precisão sua estratégia de gestão de risco à medida que buscam um crescimento sustentável na indústria de bitcoin. Nossa hipótese é que os setores nos quais a volatilidade dos preços mais impactará a economia será o crescimento dos maiores mercados de derivativos: ações da VOC em Amsterdã do século 16, agricultura e metais preciosos em 1980, taxas de juros hoje e, amanhã, talvez bitcoin.
ACESSO AO CAPITAL EM UM MUNDO DEFLACIONÁRIO
“As anuidades podem ser usadas para uma variedade de propósitos, em particular como
um meio para acertar saldos entre herdeiros […] Nos arredores da Antuérpia, o crescimento excepcional da cidade teve um forte impacto sobre o mercado local de terras e crédito por meio da participação massiva de cidadãos.”
LIMBERGER & DE VIJLDER, 2018
As anuidades vitalícias são contratos vendidos por um preço fixo, dando ao emitente o direito de receber pagamentos regulares enquanto viver. Eles foram frequentemente usados a partir do século 14 como substitutos de empréstimos, porque não violavam a proibição da usura da Igreja Católica. (A partir do século 16, a lei geralmente garantia que as anuidades perpétuas poderiam ser canceladas com o reembolso da soma de capital.) Os contratos de anuidade vitalícia eram frequentemente usados para financiar empresas de capital intensivo que tinham um perfil de risco relativamente baixo: negócios, fazendas e governos locais. Na Holanda do século 14, dois perfis econômicos emergiram. Na zona costeira, com solos arenosos e regularmente atormentados por cheias, muitos proprietários se endividaram além da conta. No interior mais estável da Flandres, o crédito baseado em anuidades foi usado para acelerar o desenvolvimento de negócios (na maioria das vezes para desbloquear um investimento imobiliário), enquanto os habitantes mais velhos comprariam os contratos como uma forma de renda de aposentadoria. As anuidades podiam ser transferidas para terceiros e, assim, tornou-se um instrumento financeiro popular entre a população urbana. À medida que a revolta holandesa entrou em ação e a receita do comércio marítimo aumentou, a proteção das cidades e de seus cidadãos tornou-se mais importante, e as cidades levantariam capital por meio da emissão de anuidades.
Uma razão importante pela qual as anuidades eram populares tão mais cedo do que o seguro de vida mútuo (que só surgiu na Inglaterra do século 18), era que ela requer muito mais confiança na entidade que fornece a apólice — o segurado precisa literalmente confiar nelas além da morte , e não há garantias que possam ser recuperadas. Havia também um componente potencialmente cultural, em que os clientes se sentiam mais confortáveis apostando em uma vida longa (anuidade) do que em uma mais curta (seguro de vida). Tendo passado recentemente seu décimo aniversário, os empréstimos denominados em bitcoins estão vivos e bem. A Genesis Capital gerou supostamente mais de US $ 2 bilhões em empréstimos e empréstimos denominados em bitcoin desde o lançamento em março de 2018. Estamos vendo demanda vindo de fundos de investimento, exchanges de bitcoin e comerciantes individuais. Vemos um paralelo entre as anuidades históricas emitidas por cidades holandesas e os tokens do IEO de hoje, que significa “oferta inicial de exchange”. Por exemplo, a Bitfinex criou um token IEO (chamado LEO) para acessar o mercado de liquidez durante um momento legalmente desafiador, bem como para diminuir o risco de seu problema de liquidez relacionado ao Tether. Ao fazer uma oferta aberta para recomprar tokens LEO pelo valor de mercado, esse token tem características semelhantes a anuidades. Outras bolsas offshore fizeram o mesmo: a Binance criou uma oferta com Binance Coin, a Huobi lançou
Huobi Token, e a FTX tem FTX Token. As exchanges de bitcoins geralmente têm bases de clientes leais que dependem de seus serviços até certo ponto, e esses tokens permitem que eles acessem essa confiança, efetivamente pegando emprestado do público. Em analogia com as cidades holandesas em apuros e os comerciantes famintos por renda, esperamos uma popularidade contínua dessas ofertas semelhantes a anuidades entre as bolsas de bitcoin offshore e os millennials de criptomoeda. Na verdade, eles são os primeiros exemplos de produtos de seguro de vida no mercado de bitcoin. Com o tempo, esperamos o surgimento de empresas mútuas de seguro de vida, que podem muito bem dar um novo fôlego ao setor de seguro de vida tradicional, fortemente enfraquecido. Estudos têm mostrado repetidamente que a inflação diminui a demanda por seguro de vida ao longo do tempo e, portanto, inversamente, se o bitcoin-as-hard-money for amplamente adotado, é lógico que os produtos de seguro de vida se tornem altamente populares mais uma vez.
Parte 4 — CONCLUSÃO
“Se o potencial de uma startup é proporcional ao seu tamanho vezes a
incompetência de seus concorrentes, a startup mais promissora de todas seria aquela que competisse com governos nacionais. Não é impossível; isso é o que as criptomoedas fazem.”
PAUL GRAHAM, FUNDADOR Y COMBINADOR, AGOSTO 2019
O capitalista de risco Eric Weinstein opinou recentemente que o ditado “boas ideias vencem ideias ruins” é falso, e que a formulação correta é “ideias adequadas superam ideias impróprias”. Ele está defendendo o ponto darwiniano de que, semelhante às chances de sobrevivência das espécies animais, uma ideia só florescerá quando as circunstâncias estiverem exatamente maduras para ela.
E, de fato, a história mostra que a qualidade de uma ideia em si não é suficiente para que floresça socialmente. Uma máquina a vapor em funcionamento foi descrita pelo Hero de Alexandria no século 1 aC, mas só foi comercializada 1.600 anos depois. A impressora móvel já existia antes da máquina de Gutenberg, na Coreia do século 14 — mas não levou a uma revolução lá. E séculos antes de Colombo e Hudson, os vikings já tinham desembarcou na América. Em outras palavras, muitas vezes as circunstâncias são tais que uma ideia altamente potente simplesmente não se torna uma adoção popular.
Mas, de vez em quando, o quebra-cabeça das circunstâncias se encaixa de maneira peculiar, criando um terreno fértil para muitas ideias serem adotadas ao mesmo tempo e permitindo um espetáculo de reações em cadeia que remodelam profundamente a sociedade. A Reforma Protestante foi uma dessas épocas: ideias germinaram, fruto de rebelião e as feridas cicatrizadas e uma geração de empreendedores radicais produziu uma série sem precedentes de inovações econômicas e financeiras fundamentais. Isso aconteceu há 500 anos e pode estar acontecendo mais uma vez.
Hoje vemos amplas partes da sociedade, especialmente a geração Y, agindo cada vez mais com críticas ao intervencionismo do banco central. Ao mesmo tempo, os tecnólogos e futuristas, em um ritmo acelerado, estão desenvolvendo uma série de ferramentas que permitem a ruptura do status quo econômico. Em uma década, projeta-se que a geração milennial terá o maior poder aquisitivo de todas as gerações, e esta geração pós-11 de setembro com experiência em tecnologia tem criptografia à sua disposição como uma tecnologia defensiva. Enquanto isso, o ecossistema do Bitcoin está amadurecendo em todos os aspectos de sua economia, em particular no banco de depósitos, seguros, empréstimos e derivativos e nas primeiras formas de seguro de vida. Se este processo persistir, o pacote de protocolos em camadas do bitcoin pode se tornar uma potência global e uma alternativa potencial para o IMFS.
Você está pronto para a Reforma do Bitcoin?
APÊNDICE
Breve cronologia da Reforma Protestante, com foco nos Países Baixos
Parte 1 — Início da dissidência
Em 1511, Erasmo de Rotterdam publica o popular “Louvor da Loucura”, uma ousada sátira da Igreja Católica. Seis anos depois, em 1517, Martinho Lutero vai a público com suas “Noventa e Cinco Teses”, uma crítica contundente das práticas rentistas da Igreja Católica. Em poucos meses, milhares de cópias circularam por toda a Europa. Em resposta a essa heresia percebida contra o catolicismo, a primeira queima de livros ocorreu em 1521. Em 1522, o rei Carlos V instituiu a Inquisição nos Países Baixos para a supressão dos hereges. Em 1523, vemos as primeiras condenações dos hereges ao fogo. Em 1535, Carlos V condena todos os hereges à morte e, em 1539, reprime a revolta fiscal contra ele em Ghent. Durante esse tempo, nenhum estrato social está livre da política de repressão; até o devoto católico flamengo Gerardus Mercator (o cartógrafo famoso por seu mapa mundial de 1569) é processado pela inquisição em 1543 e passa sete meses na prisão até ser libertado por falta de provas. No mesmo ano, Copérnico publica seu livro sobre a teoria heliocêntrica, e o anatomista flamengo Vesalius desafia fundamentalmente o modelo anatômico de Galeno pela primeira vez em mil e quinhentos anos.
Em 1548, o humanista Christoffel Plantijn muda-se para Antuérpia — sua editora de livros rapidamente se tornará a mais prestigiosa da Europa Ocidental. Em 1555, vemos a fundação do primeiro município protestante clandestino em Antuérpia.
Parte 2 — REBELIÃO ABERTA
“A audácia dos pregadores calvinistas nesta área [de Flandres] cresceu tanto que em seus sermões eles aconselham as pessoas que não é suficiente remover toda idolatria de seus corações; eles também devem removê-lo de suas vistas. Aos poucos, ao que parece, eles estão tentando impressionar seus ouvintes sobre a necessidade de pilhar as igrejas e abolir todas as imagens.”
OFICIAL DO GOVERNO ESPANHOL, 1566
Em 1559, o rei dos Habsburgo parte de Bruxelas para a Espanha, deixando a sua meia-irmã Margareta como governadora da Holanda. 1566 torna-se conhecido como o “ano milagroso”. Começa com a nobreza flamenga compartilhando uma petição de não processo com o governador da Holanda, o que produz uma reação branda. Encorajadas, as facções protestantes começam a pregar dentro das igrejas católicas, acompanhando o vandalismo mais tarde conhecido como iconoclastia. Uma trégua local é alcançada sem o consentimento do governador e os protestantes têm permissão para pregar em seis igrejas dentro das muralhas da cidade de Antuérpia. Mais tarde naquele ano, a derrota de um exército de protestantes começa a inclinar o poder devolta em favor dos monarquistas.
Parte 3 — A REPRESSÃO
Em 1567, o duque espanhol de Alba chega à Holanda com um exército de dez mil veteranos espanhóis. Ele institui um “Tribunal de Sangue” e, em seu reinado de seis anos como governador da Holanda, é considerado responsável pela morte de mais de dezoito mil pessoas. Ao chegar à Holanda, Alba arrecada impostos e começa com a construção de uma grande fortaleza nos arredores da cidade, que é concluída em 1572. Esta cidadela pentagonal torna-se “uma das instalações urbanas mais estudadas do século 16. ” Três anos depois, a coroa espanhola está com problemas financeiros e deixa de pagar seus mercenários na Holanda, que sob o comando do comandante da Cidadela de Antuérpia, Sancho D’Avila, pilham a cidade de Antuérpia em 1576. Esta “Fúria Espanhola” torna-se uma das piores atrocidades do século, em que 7–10% da população é assassinada em três dias e mil casas são destruídas.
Apesar da feroz resistência nos anos seguintes, incluindo a destruição parcial da cidadela espanhola, em 1585 a cidade de Antuérpia se rende à Espanha e todos os protestantes residentes têm quatro anos para resolver seus negócios e deixar a cidade. O mesmo acontece em Ghent e Bruxelas. Nos vinte anos que se seguiram ao Saque de Antuérpia, a cidade perdeu quase 50% de seus habitantes para a emigração. A economia mais forte da Europa acaba de sofrer um ataque cardíaco: no próximo século, os salários de Antuérpia permanecem 35% mais baixos do que, por exemplo, Leiden, uma cidade a apenas 85 milhas de distância, mas ao norte na Holanda, lugar mais amistoso aos protestantes.
Parte 4 — HOLANDA, NOVA AMSTERDAM, NOVA YORK
“O curso dos acontecimentos na Holanda depois de 1600 vai contra a opinião comum sobre a importância de uma dívida pública de capital aberto como origem de mercados secundários. As ações da VOC proporcionaram o avanço crucial, não os títulos do governo.”
GELDERBLOM & JONKER, 2004
A queda de Antuérpia e do resto do sul da Holanda ajuda a dar o pontapé inicial na era de ouro da República Holandesa, em virtude do influxo de cerca de 50–100.000 flamengos. Simultaneamente, a Inglaterra, um relativo porto seguro religioso, vê seu capital humano impulsionado por ondas de migração interna. Depois de décadas de guerra e conquista, o império espanhol enfraqueceu internamente (em parte devido às consequências para a saúde da consanguinidade) e seu forte governo baseado na hierarquia não é páreo para a organização ágil, dinâmica e comercialmente orientada das economias holandesa e britânica. A combinação de tolerância religiosa e comercial, por um lado, e um território defensável cercado de água, por outro, provou ser uma receita de sucesso e, nos próximos 200 anos, a Holanda e a Inglaterra estão na vanguarda da inovação econômica e crescimento.
Em 1579, as províncias do norte da Holanda se reúnem para assinar a União de Utrecht, na qual afirmam sua independência da Espanha. O documento declara total liberdade religiosa nos territórios holandeses, liberdade que também passará a ser respeitada em Nova Amsterdã. Em 1588, após a destruição de sua poderosa Armada no Canal da Mancha, a Espanha desiste de conquistar a Inglaterra. Em 1602, a Companhia Holandesa das Índias Orientais é fundada, entre outros, de Dirck van Os, um imigrante da Antuérpia. Van Os também ajuda a financiar a expedição de 1607 de Henry Hudson à América do Norte, assina seu nome em um dos certificados de ações mais antigos do mundo e é cofundador do Amsterdam Exchange Bank (1609). Nesse mesmo ano de 1609, um tratado de paz é assinado entre a Espanha e a República Holandesa. Em 1620, os Pais Peregrinos (Pilgrim Fathers), que mais tarde navegariam no Mayflower e fundariam a Colônia Plymouth, se estabeleceram na cidade holandesa de Leiden, onde encontraram refúgio da intolerância religiosa em sua Inglaterra natal. Em 1621, o comerciante flamengo-holandês Willem Usselincx obtém permissão do Staten Generaal para fundar a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais (WIC), com o monopólio da exploração da América do Norte. Em 1624, os primeiros colonos holandeses chegam à Ilha do Governador, fora de Manhattan. Em 1626, Walloon Peter Minuit compra a Ilha de Manhattan dos nativos americanos Lenape e a escolhe como a capital da Nova Holanda — que naquela época ainda era uma empresa puramente comercial. Em 1638, depois que o manuscrito foi contrabandeado para fora da Itália, o heliocêntrico “Duas novas ciências” de Galileu Galilei foi publicado na Holanda. Em 1643, Isaac Jogues estima a população de Manhattan em quinhentos e o número de línguas faladas lá em dezoito. Em 1644, o poeta inglês John Milton publica Areopagitica, uma defesa filosófica da liberdade de expressão e expressão. Em 1654, um pequeno grupo de judeus portugueses chega a Manhattan, e após as petições da comunidade judaica ao WIC, o governador de Nova Amsterdã, Peter Stuyvesant, eventualmente concorda em deixá-los ficar, estabelecendo um precedente de boas-vindas para futuros colonos não holandeses. Em 1664, Nova Amsterdã foi conquistada pelo exército britânico e foi rebatizada como Nova York — a população era de 9 mil habitantes na época. Em 1665, o professor de Spinoza e refugiado flamengo Franciscus Van Den Enden publica “Teses Políticas Livres”, nas quais ele defende a liberdade de expressão, liberdade de religião, igualitarismo, abolicionismo e democracia direta. Em 1683, o conde britânico Thomas Dongan é nomeado governador de Nova York e encarregado de promover a Igreja Anglicana lá — ele nunca consegue. Em 1689, John Locke publica “A Letter Concerning Toleration”, na qual o filósofo apresenta um caso altamente influente a favor da tolerância religiosa. Em 1777, Nova York adota a primeira Constituição Estadual sem qualquer estabelecimento religioso e se torna o único estado revolucionário que não possui um exame religioso para cargo público
“Dê-me a liberdade de saber, de falar e de argumentar livremente de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades.”
JOHN MILTON, 1644
“Esta convenção também […] ordena, determina e declara que o livre exercício e gozo da profissão religiosa e adoração, sem discriminação ou preferência, será para sempre no futuro ser permitido, dentro deste Estado, a toda a humanidade.”